“Sobre o início da reemergência da hepatite A com expressão epidémica” é o título da história que teve início em fevereiro de 2017, quando o Centro de Emergências em Saúde Pública (CESP) da Direção-Geral da Saúde (DGS) foi informado, pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), da identificação da estirpe VDR_521_2016 do vírus da hepatite A em 5 doentes. Já era, então, conhecida a existência de surtos em vários países europeus, da mesma estirpe circulante, em homens que fazem sexo com homens (HSH). (1) A identificação, pela 1ª vez, da estirpe em Portugal e o aumento do número de casos reportados no SINAVE (2), principalmente HSH entre 18 e 50 anos, levou o CESP a reportar o surto na RONDA (3) de 8/2/2017. A principal medida de saúde pública implementada para controlar o surto foi a vacinação. Perante a reconhecida escassez de vacinas em Portugal e nalguns países europeus (4), o Ministério da Saúde adquiriu, em 3/2017, todas as vacinas disponíveis no mercado português. Para gerir esta reserva de vacinas foi elaborada, com a colaboração de várias entidades do setor da saúde e da sociedade civil, especialistas e organismos regionais, a Norma 003/2017 (5), que determinou a vacinação gratuita de HSH e contactos, sem lugar a 2ª dose (6). A vacinação de viajantes requeria validação prévia pela DGS, condição revogada pelo Comunicado de 17/5. (7) Foram ainda realizadas campanhas de vacinação, com Unidade Móvel no Bairro Alto (8), dirigidas a HSH, notificada a Comissão Europeia, prestados esclarecimentos a cidadãos e profissionais, publicado periodicamente um boletim epidemiológico e criada uma área dedicada à hepatite A (9) no sítio da DGS. Até 19/6 foram notificados 356 casos (Fig. 1), a maioria em homens (91%), 34 anos em média, na região LVT (78%). O INSA identificou a estirpe VRD_521_2016 em 159 amostras. Figura 1 - Nº de casos notificados de hepatite A em Portugal, por semana de início de sintomas, desde Outubro de 2016 Os mass gatherings agendados para o verão e para a Pride Season (10), especialmente o WorldPride Madrid (11), implicam risco acrescido de exposição ao vírus, pelo que a DGS reitera as recomendações internacionais (5,12). Estão em curso negociações para a retoma do circuito comercial das vacinas. Texto redigido a 23 de Junho de 2017. Ana Firme, Enfermeira e Psicóloga Direção-Geral da Saúde / Centro de Emergências em Saúde Pública [1] http://ecdc.europa.eu/en/publications/Publications/13-12-2016-RRA-Hepatitis%20A-United%20Kingdom.pdf
[2] Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica https://www.dgs.pt/paginas-de-sistema/saude-de-a-a-z/sinave.aspx [3] A RONDA é uma reunião semanal em que intervêm várias Unidades Orgânicas da DGS e, quando pertinente, outros peritos, com o objetivo de providenciar informação sobre eventos com potencial impacto na saúde pública, a nível nacional ou internacional. [4] http://ecdc.europa.eu/en/publications/Publications/16-02-2017-RRA%20UPDATE%201-Hepatitis%20A-United%20Kingdom.pdf [5] http://www.dgs.pt/directrizes-da-dgs/normas-e-circulares-normativas/norma-n-0032017-de-09042017-pdf.aspx [6] http://www.who.int/csr/don/07-june-2017-hepatitis-a/en/ [7] http://www.dgs.pt/a-direccao-geral-da-saude/comunicados-e-despachos-do-director-geral/hepatite-a-vacinacao-para-viajantes-pdf.aspx [8] Parceiros: INEM, ARS-LVT, ACES Lisboa Central, CML, EMEL, Polícia Municipal de Lisboa, GAT/CheckpointLX e ILGA http://www.dgs.pt/ficheiros-de-upload-2013/hepatite-a-apresentacao-pdf.aspx [9] http://www.dgs.pt/saude-publica1/hepatite-a.aspx [10] http://www.ilga-europe.org/resources/pride-event-calendar [11] http://www.worldpridemadrid2017.com/ [12] http://ecdc.europa.eu/en/publications/Publications/RRA-Mass%20gathering-WorldPride-Spain-5-May-2017.pdf
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Até maio de 2017, os países da união europeia reportaram mais de 4 mil casos de infeção pelo vírus de hepatite A, especulando-se que pelo menos outro milhar de infeções tenha ficado por reportar, dada a proporção expectável de casos assintomáticos. Segundo a DGS, foram notificados em Portugal meio milhar de casos, na sua grande maioria do sexo masculino, residentes na região de Lisboa e Vale do Tejo. A curva epidémica aparenta estar em fase descendente, sem que seja possível excluir novos picos a breve termo, após as celebrações deste verão. Mas este não é um artigo de resenha epidemiológica, já sobejamente relatada. O surto de hepatite A pôs a nu as insuficiências dos sistemas de saúde, instituições públicas e privadas um pouco por toda a Europa, na sua debilidade para a gestão de problemas de saúde em populações que desconhecem. Portugal não foi exceção. Passaram-se meses entre o reconhecimento dos primeiros casos e a emissão das primeiras recomendações de estratégias preventivas para profissionais de saúde e o grande público. Foram (e são ainda) incontáveis os obstáculos burocráticos à implementação de medidas preventivas no terreno. Foram inúmeras as horas perdidas em telefonemas, emails, reuniões e entrevistas com DGS, SPMS, Infarmed, várias ARS, vários ACES, vários CVI, várias farmacêuticas, várias ONG, PSP, Polícia Municipal, e até mesmo a EMEL. "Há que seguir procedimentos", "hoje não vai dar", "as coisas têm de seguir as vias próprias", "teremos de aguardar" — frases ouvidas mais vezes que o desejável no contexto de um surto. Enquanto as autoridades nacionais de saúde despertavam tardia mas decididamente para o seu papel de liderança, uma autoridade local virtualmente desaparecia de cena, médicos(as) e enfermeiros(as) obstaculizavam de forma mais ou menos consciente os esforços de contenção do surto, jornalistas publicavam artigos sensacionalistas, membros de associações civis introduziam entropia no processo, e até mesmo cidadãos rejeitavam as ações em curso e tardavam em mobilizar-se. Acordaram-se velhos e novos fantasmas, um pouco por toda a parte, mesmo (ou sobretudo) no insuspeito ECDC: desde o regresso dos proscritos "grupos de risco" (explicação na página 8) à completa invenção de uma ligação com um novo perigo de nome sexy, o "Chemsex". Talvez o maior insólito tenha sido o prolongado desconhecimento da maioria dos envolvidos, aquém e além fronteiras, sobre algo tão simples quanto a via de transmissão da infeção e, consequentemente, sua prevenção. "Transmissão feco-oral" ou "sexo oro-anal" foram, para muitos, ideias abstratas. Desde jornalistas, a investigadores e profissionais de saúde, todos enfatizavam as relações sexuais "desprotegidas" entre homens que têm sexo com homens como risco a combater, pese embora a existência de literatura sublinhando a inépcia do preservativo como ferramenta preventiva da infeção pelo VHA — como pode algo que serve para revestir o pénis ser utilizado numa prática que não o envolve? Foi apenas quando uma icónica fotografia de 1992 do infame "Sex Book" de Madonna começou a ser partilhada que, várias semanas após o início do surto, muitos se aperceberam enfim da ridícula obstinação pelo preservativo. No entanto, nem tudo são espinhos. O governo desbloqueou verbas avultadas para fazer face ao surto, num raro momento em que algo se resolveu com assombrosa rapidez. Profissionais com décadas de carreira e novos astros mediáticos com milhares de seguidores arriscaram as suas reputações em momentos-chave. Voluntários(as) deram horas dos seus dias sem pestanejar, frequentemente noite dentro, percorrendo quilómetros em praças, ruas, clubes noturnos e locais de cruising para fazer chegar a informação a quem precisava. Mais que traçar um registo meticuloso do que foi feito, este artigo pretende transmitir a frustração de ter de percorrer uma corrida de obstáculos em círculos para resolver problemas que deveriam ser simples: vacinar alguém demora menos de 2 minutos. Urge sair dos gabinetes. Urge falar com as pessoas e fazer-lhes perguntas, cultivando a curiosidade e abertura de mente face às respostas que possamos ouvir. Urge conhecer as nossas inépcias e corrigi-las, para que a Saúde Pública possa ser ágil no caminho da teoria à prática. Diogo Medina
Médico Interno de Formação Específica em Saúde Pública GAT/CheckpointLX |
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Fevereiro 2024
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