3/12/2021 0 Comentários O desenvolvimento de Sistemas de Informação em Saúde Pública e o Papel do InternoDesde há cerca de 10 anos que acompanho o tema da saúde digital. Dou aulas e formações sobre o tema e integro atualmente dois grupos de trabalho sobre Sistemas de Informação em Saúde. Ainda assim, quando me perguntaram, para este artigo, qual era o ponto de situação sobre a criação de software de apoio ao trabalho de um Médico de Saúde Pública, não sabia muito bem por onde começar. Depois de refletir sobre o assunto, cheguei à conclusão que o melhor seria começar pelo princípio.
Existem registos do início do século passado que evidenciam que Ricardo Jorge já tentava estabelecer um sistema de informação adequado para a Saúde Pública, ainda que não fosse um sistema informático. Na altura, focava-se na necessidade de reporte de informação sobre nascimentos, mortes e suas causas, entre outros[1]. É extraordinária a semelhança entre os escritos de Ricardo Jorge e o que vemos ainda hoje escrito pela cadeia de Autoridades de Saúde, mais de um século volvido. Talvez resida aí parte do problema. Embora exista alguma cultura de discussão na especialidade médica de Saúde Pública em Portugal, há pouca cultura de escrita e menos ainda de apresentação concreta de propostas e de inovação (a implementação bem-sucedida de uma invenção). Das discussões que tenho seguido sobre o Sistema de Informação para a Saúde Pública, há alguns pontos que me parecem importantes endereçar: (i) a aspiração de um sistema perfeito; (ii) a incapacidade de influência ao nível das lideranças do sistema de saúde; e (iii) poucas iniciativas concretas que possam ser escaladas. Dada a diversidade das funções do médico de saúde pública, ter apenas um sistema de apoio para todas as suas funções parece-me não só algo quase utópico, como até pouco prático. Se usamos na nossa vida pessoal vários tipos de programas informáticos mediante o propósito pretendido, porque haveria de ser comprimida a diversidade da saúde pública num único programa? Eventualmente, até se poderia conseguir um Sistema Informático, num determinado tempo, com qualidade minimamente satisfatória. Já a probabilidade de conseguir assegurar a manutenção de qualidade e adequação para o propósito (fit for purpose) parece-me muito pouco provável. É certo que não convirá ter um sistema informático para cada projeto ou programa relacionado com a saúde pública, mas julgo ser pouco realista colocar tudo no mesmo, atualmente. Penso que mais rapidamente conseguiríamos vários programas informáticos, se houvesse uma definição clara de que áreas de intervenção da Saúde Pública deveriam ter um Sistema Informático, priorizando-as. Para isso, seria necessário algum consenso e capacidade de influência. E aqui reside um outro problema. Já no Relatório sobre as Carreiras Médicas da Ordem dos Médicos[2], na década de 1960, lê-se: “… os médicos de saúde pública (que quase não temos), sem os quais não há uma política de saúde digna deste nome”. Assim, infelizmente, creio que estamos muito longe de ver as nossas aspirações concretizadas por esta via. Na vertente da informação médica, tão naturalmente próxima da saúde pública, não é diferente. Têm existido algumas figuras da saúde pública de destaque e com alguma capacidade de liderança, mas tem sido muito parca a capacidade dos médicos de saúde pública de se fazerem ouvir nas discussões sobre Sistemas de Informação em Portugal. Há, no entanto, vários bons exemplos a destacar. O SICO, a plataforma de apoio ao SINAVE e, mais recentemente, o Trace COVID-19. Todos tiveram um envolvimento relevante de Médicos especialistas e internos de Saúde Pública. Na região de Lisboa e Vale do Tejo, o SISP é a plataforma que chegou mais próximo da concretização de um Sistema Informático para a Saúde Pública (o nome também ajuda nessa perceção). Mas precisamos de mais. Este tempo de pandemia e de pressão sobre os serviços de saúde pública tem sido muito fértil na criação de soluções informáticas “caseiras” nas diferentes USP. A pressão de ter de fazer mais e mais rapidamente, associada a canais de partilha de informação, tem sido um terreno propício a incentivos à mudança nas diferentes Unidades. Em alguns locais foram criados sistemas informáticos elaborados, com programação já algo avançada, enquanto noutros foram utilizadas as ferramentas que vão estando disponíveis por via de Power Automate e automatismos gratuitos diversos. Algumas destas opções são incrivelmente simples de usar, requerendo apenas investimento de tempo e paciência para superar a curva de aprendizagem, com as suas tentativas e erros característicos. Um programa de que gosto particularmente, embora existam vários, é o Mouse Recorder Premium, um simples gravador da utilização do cursor do rato e das teclas do computador. Com este programa é possível emitir testes de SARS-COV-2 de forma automática, completar alguns dados de RNU com base no número do SNS ou NIF, fazer coleção de informação que esteja em linha, entre outras possibilidades. As ferramentas com utilidade potencial são inúmeras, e, para quase todas, há algum vídeo no youtube, ou tutorial numa página da internet, a ensinar como se obtém o que se pretende. No fundo, o mais importante é continuar a tentar inovar nos procedimentos e partilhar o que se consegue realizar. Porque saber que é possível fazer algo é meio caminho andado para se conseguir efetivamente fazê-lo. Diria até que é o primeiro de muitos passos no caminho para a inovação. Este dinamismo de descoberta implica também uma constante atualização de competências, e desafia à evolução dos sistemas mais formais que nos são fornecidos. É a partir deste ambiente de entreajuda e dinâmica de mudança que será possível criar um novo ecossistema de Sistema(s) Informático(s) de Saúde Pública. E como é que lá chegamos? Primeiro, acredito que é preciso dar maior preponderância aos sistemas de informação (informáticos ou não) no contexto da formação do internato. Seja através da aposta em educação formal nesta área, para a qual há muita oferta, seja através de estágios opcionais. Os SPMS e outras instituições semelhantes devem ser, de forma crescente, locais de acolhimento para estágios, sem esquecer os departamentos afins nos hospitais de referência de cada USP, as UAG/CCS, ou os serviços centrais da respetiva ARS. Conhecer os colegas destas áreas deve fazer parte dos esforços de crescimento da rede de contactos de qualquer interno. E aqui faço um parêntesis para destacar o que os consultores do podcast Career Tools referem como os dois principais objetivos de um profissional que quer progredir: (i) obter resultados e (ii) fazer crescer a sua rede de contactos. Sem dúvida que numa área tão multidisciplinar como a Saúde Pública, este último ponto reveste-se de particular relevância. Por fim, é fundamental transformar o benefício “individual” em benefício coletivo, através da participação em grupos de trabalho e de discussão, que possam levar a propostas concretas de melhorias no nosso sistema de saúde (wink, wink). Face ao atual grupo de Médicos Internos que temos em formação, não tenho dúvidas de que esta será uma das áreas que terá uma melhoria significativa nos próximos anos. Autor Miguel Cabral
Edição Nuno Do Amparo ________________________________________ [1] Sobre este tema, recomendo vivamente a leitura da 4ª parte do livro “Ricardo Jorge, a Saúde Pública e as perversões do municipalismo” de Aires Antunes Diniz. [2] Tal como no livro mencionado anteriormente, a leitura deste documento causa alguma estranheza quando se compara o diagnóstico de então com a nossa realidade atual.
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