A qualidade é um constructo intuitivo, uma busca incessantemente. Mesmo desconhecendo Shewart, Deming e Juran, autores clássicos da qualidade, pode entender-se, com facilidade, que qualidade é um atributo – subjetivamente interpretável – que quantifica a aproximação das características de um produto ou serviço às expectativas dos seus utilizadores. A qualidade na saúde, tal como definida por Donabedian[1], é um reflexo dos valores e objetivos dos diversos intervenientes dos sistemas de saúde, acompanhando a transformação evolutiva da humanidade e das sociedades. Assim, a qualidade na saúde é evolutiva e dinâmica. Os sistemas de saúde estão fortemente ameaçados pela evolução demográfica, o desenvolvimento e inovação tecnológica e a modificação das expetativas dos cidadãos e utentes[2]. Esta realidade inegável impõe dois polos de tensão que comprometem a sustentabilidade dos sistemas de saúde: por um lado o envelhecimento da população, com um número crescente de problemas crónicos de saúde e utilização massiva do sistema, e, por outro, a expectativa de atingir elevados estados de saúde nos casos de doenças raras e complexas, implicando o recurso inevitável e crescente a tecnologias inovadoras. A qualidade na saúde é um desígnio das sociedades modernas, sendo transversal e repetidamente integrada no planeamento estratégico das várias instituições e organizações internacionais, dado o seu reconhecido valor na criação de sistemas de saúde sustentáveis. A Organização Mundial de Saúde identificou a eficácia, a segurança, os cuidados centrados na pessoa, a equidade, o acesso em tempo útil, a integração e a eficiência como algumas das dimensões da qualidade na saúde[3]. Da mesma forma, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico reconheceu que os sistemas de saúde com qualidade caracterizam-se por um acesso primordial através dos cuidados de saúde, com modelos de prestação de cuidados de saúde integrados, seguros e centrados na pessoa, baseados na melhor evidência científica disponível e no desenvolvimento profissional contínuo, alicerçados em sistemas de monitorização e avaliação, e, ainda, por estratégias que promovam a literacia e participação ativa dos doentes e da sociedade civil[4]. Em Portugal, a Direção-Geral da Saúde estabeleceu também a qualidade na saúde como um eixo estratégico do Plano Nacional de Saúde (Revisão e Extensão a 2020)[5] assente num princípio de incentivo à melhoria contínua da prestação de cuidados de saúde. Mas, para alcançar a qualidade na saúde é essencial construir um modelo conceptual e doutrinário que una e consensualize as várias perspetivas de qualidade na saúde, por vezes distintas entre profissionais de saúde, gestores e decisores. Por outro lado, o mesmo modelo tem de clarificar a adequação metodológica dos instrumentos próprios da qualidade à concretização desse ambicioso objetivo. Acima de tudo, é necessário que os atores da qualidade na saúde desempenhem um papel transformativo e ousem, através da qualidade, enfrentar as grandes questões dos sistemas de saúde. Conceptualmente, implementar qualidade na saúde é desenhar um sistema navegável, onde o utente certo encontra a equipa de saúde certa, e garantir que as relações entre utentes e equipas sejam seguras, humanizadas e suportadas pela melhor evidência científica. No passado, a informação constituía um determinante do sucesso. Hoje, o sucesso depende cada vez mais da capacidade de escolher qual é a informação relevante. A qualidade na saúde assume uma posição cimeira para promover a escolha certa, isto é, a navegabilidade dos utentes nos sistemas de saúde, através da implementação de circuitos que garantam o acesso em tempo útil, a transição adequada entre diferentes níveis de cuidados, bem como a prestação integrada de cuidados de saúde. A navegabilidade é uma característica determinante quer no polo da cronicidade e multipatologia, pela premente necessidade de integração da prestação de cuidados e evicção da dispersão excessiva, quer no polo da inovação tecnológica, pela necessidade de disponibilizar estas tecnologias aos seus destinatários, independentemente do ponto da teia do sistema onde se encontrem. A prestação direta de cuidados de saúde, no seio da relação utente / equipa de saúde, é de qualidade (e de excelência) quando é baseada na melhor evidência científica disponível, segura – retomando o princípio hipocrático primum non nocere – e, humanizada, isto é, assente num respeito exemplar dos direitos humanos e das circunstâncias irrepetíveis de cada ser humano. A evidência científica evocada não se esgota no conceito de medicina baseada na evidência (MBE)[6]. É indiscutível o papel da MBE na formulação de recomendações para a prática clínica, baseadas no rigor do método experimental e hierarquização de estudos científicos. Contudo, os desafios atuais dos sistemas de saúde, sobretudo a ameaça à sua sustentabilidade, exigem decisões baseadas em evidências que incluem, mas transcendem, a MBE. Os princípios e os métodos das ciências sociais, nomeadamente a economia e a gestão, podem construir, quando clinicamente enquadrados, importantes alicerces para a tomada de decisão em saúde. A tomada de decisão clínica que converge os contributos da MBE e os alicerces das ciências socias é uma promotora de eficiência, criando valor para o utente e sustentabilidade para o sistema. Implementar qualidade na saúde, metodologicamente, é abordar os sistemas de saúde e comprometer os seus profissionais com o ciclo de melhoria contínua proposto por Shewart e Deming. Mais do que uma visão purista da qualidade, dada pela sequência estrutura-processo-resultado, a qualidade na saúde exige uma metodologia circular plan-do-study-act/improve, pensada a um nível macro – central – e a um nível meso/micro – em cada unidade e equipa de saúde. Os ciclos de melhoria continua da qualidade estrategicamente planeados a nível central só se completam com a participação plena dos profissionais de saúde, responsáveis insubstituíveis pelo fazer. Neste ciclo, a estratégia consagra a planificação e conceptualização de um sistema de saúde com qualidade, as normas e instrumentos, construídos com flexibilidade para adaptação às vicissitudes locais, promovem a implementação efetiva das medidas que contribuem para prestação de cuidados de saúde de qualidade, e a avaliação, quer por modelos de certificação que por monitorização de indicadores de saúde, garante a circularidade da melhoria continua, alicerçada numa forte contextualização analítica. Parece concretizar-se que a implementação da qualidade na saúde exige uma planificação e conceptualização ousada e unificadora; um auxílio à execução efetiva, pelos profissionais de saúde; e uma capacidade de monitorização que permita a análise critica dos resultados obtidos. Válter R. Fonseca, MD, PhD
[1] Donabedian A. Evaluating the quality of medical care. 1966. Milbank Q. 2005;83(4):691-729. [2] Walshe K, Smith J. Healthcare Management. Third Edition. McGraw Hill Education, 2016. [3] World Health Organization, WHO. Handbook for National Quality Policy and Strategy, 2018. [4] OECD. Caring for Quality in Health. Lessons Learn from 15 Rev Heal Care Qual, 2017. [5] PORTUGAL. Ministério da Saúde. DGS. Plano nacional de saúde: Revisão e extensão a 2020. Direção-Geral da Saúde, 2015. [6] Chang S, Lee TH. Beyond Evidence-Based Medicine. N Engl J Med. 2018;379(21):1983-1985.
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Fevereiro 2024
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