Até maio de 2017, os países da união europeia reportaram mais de 4 mil casos de infeção pelo vírus de hepatite A, especulando-se que pelo menos outro milhar de infeções tenha ficado por reportar, dada a proporção expectável de casos assintomáticos. Segundo a DGS, foram notificados em Portugal meio milhar de casos, na sua grande maioria do sexo masculino, residentes na região de Lisboa e Vale do Tejo. A curva epidémica aparenta estar em fase descendente, sem que seja possível excluir novos picos a breve termo, após as celebrações deste verão. Mas este não é um artigo de resenha epidemiológica, já sobejamente relatada. O surto de hepatite A pôs a nu as insuficiências dos sistemas de saúde, instituições públicas e privadas um pouco por toda a Europa, na sua debilidade para a gestão de problemas de saúde em populações que desconhecem. Portugal não foi exceção. Passaram-se meses entre o reconhecimento dos primeiros casos e a emissão das primeiras recomendações de estratégias preventivas para profissionais de saúde e o grande público. Foram (e são ainda) incontáveis os obstáculos burocráticos à implementação de medidas preventivas no terreno. Foram inúmeras as horas perdidas em telefonemas, emails, reuniões e entrevistas com DGS, SPMS, Infarmed, várias ARS, vários ACES, vários CVI, várias farmacêuticas, várias ONG, PSP, Polícia Municipal, e até mesmo a EMEL. "Há que seguir procedimentos", "hoje não vai dar", "as coisas têm de seguir as vias próprias", "teremos de aguardar" — frases ouvidas mais vezes que o desejável no contexto de um surto. Enquanto as autoridades nacionais de saúde despertavam tardia mas decididamente para o seu papel de liderança, uma autoridade local virtualmente desaparecia de cena, médicos(as) e enfermeiros(as) obstaculizavam de forma mais ou menos consciente os esforços de contenção do surto, jornalistas publicavam artigos sensacionalistas, membros de associações civis introduziam entropia no processo, e até mesmo cidadãos rejeitavam as ações em curso e tardavam em mobilizar-se. Acordaram-se velhos e novos fantasmas, um pouco por toda a parte, mesmo (ou sobretudo) no insuspeito ECDC: desde o regresso dos proscritos "grupos de risco" (explicação na página 8) à completa invenção de uma ligação com um novo perigo de nome sexy, o "Chemsex". Talvez o maior insólito tenha sido o prolongado desconhecimento da maioria dos envolvidos, aquém e além fronteiras, sobre algo tão simples quanto a via de transmissão da infeção e, consequentemente, sua prevenção. "Transmissão feco-oral" ou "sexo oro-anal" foram, para muitos, ideias abstratas. Desde jornalistas, a investigadores e profissionais de saúde, todos enfatizavam as relações sexuais "desprotegidas" entre homens que têm sexo com homens como risco a combater, pese embora a existência de literatura sublinhando a inépcia do preservativo como ferramenta preventiva da infeção pelo VHA — como pode algo que serve para revestir o pénis ser utilizado numa prática que não o envolve? Foi apenas quando uma icónica fotografia de 1992 do infame "Sex Book" de Madonna começou a ser partilhada que, várias semanas após o início do surto, muitos se aperceberam enfim da ridícula obstinação pelo preservativo. No entanto, nem tudo são espinhos. O governo desbloqueou verbas avultadas para fazer face ao surto, num raro momento em que algo se resolveu com assombrosa rapidez. Profissionais com décadas de carreira e novos astros mediáticos com milhares de seguidores arriscaram as suas reputações em momentos-chave. Voluntários(as) deram horas dos seus dias sem pestanejar, frequentemente noite dentro, percorrendo quilómetros em praças, ruas, clubes noturnos e locais de cruising para fazer chegar a informação a quem precisava. Mais que traçar um registo meticuloso do que foi feito, este artigo pretende transmitir a frustração de ter de percorrer uma corrida de obstáculos em círculos para resolver problemas que deveriam ser simples: vacinar alguém demora menos de 2 minutos. Urge sair dos gabinetes. Urge falar com as pessoas e fazer-lhes perguntas, cultivando a curiosidade e abertura de mente face às respostas que possamos ouvir. Urge conhecer as nossas inépcias e corrigi-las, para que a Saúde Pública possa ser ágil no caminho da teoria à prática. Diogo Medina
Médico Interno de Formação Específica em Saúde Pública GAT/CheckpointLX
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Fevereiro 2024
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