1) Sistemas de saúde em evolução: Num tempo de grandes incertezas é cada vez mais difícil antecipar o futuro e cada vez mais necessário tentar fazê-lo. Há uma ciência em desenvolvimento e uma literacia necessária sobre o desenho, o comportamento e a evolução dos grandes sistemas sociais, porque todos temos um papel a desempenhar. Há mais de uma década, num estudo sobre o que pensavam os europeus sobre o futuro dos seus sistemas de saúde, concluía-se que estes temiam que “faltasse aos seus governantes a cultura, a imaginação e a vontade necessárias para canalizar para soluções de interesse comum, o enorme potencial de inteligência, conhecimento e inovação disponíveis na sociedade atual” (1). Conclusão interessante, mas insuficiente! Faltaria acrescentar alguma coisa sobre o papel dos inquiridos, dos europeus, para que essas transformações aconteçam. A compreensão da complexidade dos sistemas de saúde e das suas implicações na governação da saúde é uma matéria de relevância crescente. A este propósito, observa Daniel Innerarity, em “Uma Teoria para a Democracia Complexa” (2021) (2), “estamos ainda pouco preparados para lidar com a riqueza dos elementos, valores, informação e inteligência distribuída, interdependência, incerteza, inabarcabilidade e aceleração, próprias dos nossos tempos”. E acrescenta que isso leva a uma prática política que sobrevive pelas vantagens da simplificação, num mundo que não compreende, compensando “a penúria analítica com a prescrição fácil”. Neste contexto, vejo vantagens em adotar uma exposição que, sem perder de vista essa complexidade, torna mais tangíveis os aspetos críticos do que está em causa, visualizando e contrastando duas alternativas para a evolução dos sistemas de saúde: (a) a sua “democratização” – um sistema de saúde primordialmente centrado nas pessoas – ou (b) a sua “industrialização” – um sistema de saúde predominantemente baseado na normalização e rentabilização de procedimentos. 2) Industrialização nos sistemas de saúde: Comecemos pela industrialização dos sistemas de saúde (3), na qual se faz a convergência do “conhecimento” com a “rentabilidade”. Trata-se do aperfeiçoamento de “cadeias de produção”, tendencialmente transnacionais, de prestação de cuidados, ganhando rentabilidade pela normalização de produtos, técnicas, tecnologias e procedimentos, em grande escala. Essa normalização inclui a gestão do percurso das pessoas (triagem e referenciação protocolizadas) através dos serviços considerados necessários. Os custos, os preços, o desempenho e a rentabilidade de cada percurso são rigorosamente calculados e tidos em conta na gestão desses percursos. As decisões críticas destes processos industriais são tomadas longe das pessoas e das comunidades onde os cuidados são prestados, em “lugar incerto”, e dificilmente são influenciados por elas. São financiadas por “dispositivos seguradores” e a diferenciar o acesso aos cuidados em função das características das fontes de financiamento dos clientes. Podem “diferenciar o produto” (decidir o tipo de cuidados que prestam) e “segmentar o mercado” (o país/região onde se instalam, e tipos de financiamentos que aceitam) de acordo com os seus critérios de rentabilidade. Tendem a ser organizações empresariais atuando simultaneamente em múltiplos mercados, para além da prestação de cuidados de saúde (4). Profissionais e académicos de distintos países desenvolvidos – dos Estados Unidos e da Europa – subscreveram recentemente um “manifesto anti industrialização” dos sistemas de saúde (5). 3) Democratização dos sistemas de saúde: Em contrapartida, um sistema de saúde primordialmente centrado nas pessoas, procura a fórmula certa para fazer a convergência do “conhecimento” com a “democratização”. Começa por valorizar os fatores que protegem e promovem a saúde das pessoas e das comunidades onde se inserem, ao longo de todo o seu percurso de vida, com a sua participação. Promovem planos de cuidados, como “propriedade das pessoas”, com objetivos acordados e resultados avaliáveis, partilhados digitalmente por toda a equipa cuidadora, gerindo assim o percurso das pessoas através dos cuidados de que necessitam. E isso é para todos. Da análise contínua desses resultados estabelece-se um processo permanente de aprendizagem para todos os envolvidos nesse processo. E isso suscita duas perguntas essenciais para a governação da saúde: com os recursos disponibilizados para a saúde – para o Serviço Nacional de Saúde – que resultados de saúde podemos esperar realizar? E até que ponto são essas expectativas razoáveis e aceitáveis? 4) Um modelo de governação para a democratização da saúde: Para realizar expectativas aceitáveis precisamos de um novo modelo de governação e governança, não só para o Serviço Nacional de Saúde, mas também para a saúde por parte do conjunto do governo (6). Isso inclui, entre outras coisas, (a) novas formas de gerir as inteligências distribuídas e colaborativas necessárias à democratização do sistema e (b) dispositivos adequados de análise, planeamento e gestão estratégica para a gerir a sua transformação. Está em curso na União Europeia o desenvolvimento do “Espaço Europeu de Dados de Saúde” cujos dois principais objetivos são: (a) “Capacitar as pessoas através de um maior acesso digital aos seus dados pessoais de saúde eletrónicos e do controlo desses dados, a nível nacional e da EU” e (b) “apoiar a sua livre circulação, promovendo um verdadeiro mercado único para os sistemas de registos de saúde eletrónicos” (7). Só um grande equilíbrio na persecução simultânea destes dois objetivos assegura a democratização dos sistemas de saúde em vez da sua industrialização. Para tudo isso necessitamos de um Estado mais inteligente, como salientam vários autores, entre os quais Mariana Mazzucato (8) (9) – “precisamos de um Estado inteligente e criativo orientado para uma missão estratégica; necessitamos de um contrato social a prazo, transversal, não por sectores, mas sim por “missões” que aceitem os desafios do nosso tempo e se comprometam com resultados concretos para as ações a empreender. Os que servem o Estado (os “funcionários”) têm que ser empreendedores públicos”. Penso também assim há algumas décadas (10). 5) Saúde Pública e sistemas de saúde: A Saúde Pública tem um papel fundamental na sustentação da democratização da saúde, a nível local, nacional, europeu e global. 5.1. Saúde Pública na comunidade: São necessárias “estratégias (planos) locais de saúde” como compromissos entre todos os atores sociais locais para proteger e promover a saúde da comunidade (que não podem deixar de ter um papel fundamental em tempo de emergência de saúde pública). O país precisa de um fórum onde se apresentem, discutam e valorizem as estratégias locais de saúde em desenvolvimento e de uma rede de troca de experiências e aprendizagem contínua neste domínio. Mas para que isso aconteça, é indispensável apostar no desenvolvimento das Unidades de Saúde Pública dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), parente pobre da reforma dos cuidados de saúde primários – desde a gestão da informação, conhecimento e comunicação, até aos recursos humanos e competências necessárias para atuar na comunidade. Este desenvolvimento terá de ser potenciado pela efetiva ativação da governação clínica e de saúde. 5.2. Saúde Pública nacional, europeia e global: O país precisa de políticas de bem-estar e prosperidade, transversais a todos os sectores económicos e sociais, da responsabilidade do conjunto do governo, com o apoio conceitual e técnico das instituições de Saúde Pública. O “Plano Nacional de Saúde” ainda não serve esse propósito. Em Novembro de 2022 a Comissão Europeia propôs uma “Estratégia da União Europeia para a Saúde a nível Global” (11). A principal mensagem da Estratégia é que “a UE tenciona reafirmar a sua responsabilidade e aprofundar a sua liderança no interesse dos mais elevados padrões de saúde, com base em valores fundamentais, como a solidariedade e a equidade, e o respeito pelos direitos humanos”. Esta estratégia define 3 prioridades fundamentais: (a) Melhorar a saúde e o bem-estar das pessoas ao longo da vida; (b) Reforçar os sistemas de saúde e promover a cobertura universal dos serviços de saúde; e (c) Prevenir e combater as ameaças para a saúde, incluindo pandemias, aplicando uma abordagem «Uma Só Saúde». Não pode deixar de existir uma grande proximidade entre as preocupações internas da UE com a saúde e o desenho desta estratégia global. Espera-se que isso tenha também reflexos positivos para os portugueses. Referências bibliográficas:
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Fevereiro 2024
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