1/8/2021 0 Comentários Sequenciação genómica de Doenças Infecciosas virais: Importância para a Saúde PúblicaO vírus Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) foi detetado pela primeira vez num grupo de doentes na província de Hubei na China em Dezembro de 2019. A maior parte dos primeiros casos tinham em comum o facto de terem visitado um mercado de venda de animais vivos em Wuhan (Huanan Seafood Wholesale Market). Estes doentes apresentavam clinicamente pneumonia com hipoxémia, com alterações radiográficas no pulmão com consolidação ou opacidades em padrão de vidro despolido e, em alguns casos graves, linfopenia e alterações da função renal e hepática, entre outros (1).
Este surto foi reportado a 31 de Dezembro de 2019 pelas autoridades chinesas, sendo que nos primeiros artigos publicados em Janeiro não havia qualquer indicação da existência de transmissão entre humanos. No início de Janeiro foi isolado o vírus causador destes casos de pneumonia atípica e no dia 11 de Janeiro, a sequência do genoma do vírus foi partilhada publicamente através da plataforma virological.org (https://virological.org/t/novel-2019-coronavirus-genome/319). Este vírus foi classificado na família Coronaviridae, subgénero Sarbecovirus e na espécie Severe acute respiratory syndrome-related coronavirus (https://talk.ictvonline.org/taxonomy/), à qual pertence também o vírus SARS-CoV que tinha causado uma pandemia de muito menores dimensões em 2002-2003 (2). As análises filogenéticas realizadas indicam que o genoma mais próximo do SARS-CoV-2 circulante em humanos é um sarbecovirus isolado a partir de morcegos (RaTG13), com uma data de divergência estimada em 1948 (95% highest posterior density (HPD): 1879–1999), 1969 (95% HPD: 1930–2000) e 1982 (95% HPD: 1948–2009), indicando que a linhagem que deu origem ao SARS-CoV-2 circula em morcegos há décadas (3). Um artigo publicado em Março de 2020, que analisou a dinâmica de transmissão de SARS-CoV-2 no início da epidemia em Wuhan, indicou que em Dezembro de 2019 já havia evidência de transmissão entre humanos. Em meados de Janeiro, o vírus já circulava em toda a província de Hubei e a 23 de Janeiro, foi declarado o lockdown de Wuhan, numa tentativa de travar a disseminação do vírus. No entanto, estes esforços foram infrutíferos: no final de Janeiro começaram a ser reportados casos de transmissão entre humanos fora da China e, a 30 de Janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional causada pela pandemia de SARS-CoV-2 (4). Desde o momento em que o primeiro genoma de SARS-CoV-2 foi partilhado publicamente, foram sequenciados e partilhados quase 1 milhão de genomas de SARS-CoV-2. Esta pandemia constitui por esse motivo o primeiro exemplo de uma pandemia que foi acompanhada quase em tempo real pela geração de genomas virais e a vigilância em tempo real do surgimento de novas mutações no genoma viral. No caso do SARS-CoV-2, a vigilância em tempo real do surgimento de novas variantes virais permitiu guiar decisões de enorme importância em saúde pública, como a decisão de encerramento de fronteiras entre países ou as limitações de viagens entre determinados países. Permitiu também analisar rapidamente o impacto dessas variantes na efetividade das vacinas atualmente disponíveis (5). O SARS-CoV-2 é o primeiro exemplo de vigilância epidemiológica molecular em tempo real. No entanto, estes tipos de abordagens surgiram há mais de 20 anos no contexto da pandemia de VIH/SIDA. Quando esta pandemia – que circulou indetetada em África durante dezenas de anos - foi detetada, já existiam inúmeros subtipos e formas circulantes recombinantes em circulação (6). Muito cedo, percebeu-se que o vírus tinha uma taxa evolutiva elevada e que, em doentes tratados em monoterapia com AZT, rapidamente surgiam mutações de resistência que comprometiam a sensibilidade ao fármaco (7). Por outro lado, percebeu-se também que se podia utilizar sequências genómicas do vírus em contexto forense, para reconstruir cadeias de transmissão da infeção (8). Uma vez que cada doente apresenta variantes do vírus com características únicas, servindo como uma impressão digital da sua infeção, podemos utilizar estas sequências em árvores filogenéticas que permitem reconstruir a história de transmissão da infeção. Esta metodologia foi e é usada em tribunal para fornecer evidência que favoreça ou não a hipótese de ter havido infeção de um doente por outro(s) em casos criminais de transmissão da infeção (9). A utilização da metodologia de reconstrução de cadeias de transmissão de VIH-1 com base em sequências genómicas do vírus e métodos de filogenética passou, entretanto, a ser comum e atualmente é utilizada para melhor compreender os determinantes da transmissão da infeção e para guiar estratégias de prevenção em saúde pública. Temos feito alguns estudos em que usamos esta abordagem para melhor compreender os determinantes de transmissão da infeção VIH em Portugal em diferentes grupos de doentes(10). Por outro lado, o estudo das mutações de resistência aos diferentes ARVs é crucial para as decisões relativas ao acompanhamento clínico dos doentes e para gerar guidelines terapêuticas, que podem diferir em diferentes regiões do globo. Por exemplo, a elevada prevalência de mutações de resistência aos NNRTIs motivou o abandono de regimes de 1ª linha que utilizavam NNRTIs para os substituir por inibidores da integrase. Por outro lado, a baixa prevalência global de resistências primárias aos inibidores da integrase motiva que os testes de resistência aos inibidores da integrase ainda não estejam recomendados para doentes drug naive, ao contrário do que acontece para outras classes de fármacos, em que se efetuam testes de resistência logo após o diagnóstico da infeção (11). Importa que este tipo de decisões sejam fundamentadas com base em investigação. Por exemplo, no nosso laboratório gerámos informação num pool de doentes que indica um nível ainda muito baixo de resistências primárias aos inibidores da integrasse (INSTIs) em Portugal, indicando que por enquanto não há necessidade de testar resistências aos INSTIs em doentes drug naive (12). Tanto o VIH-1 como o SARS-CoV-2 são exemplos de zoonoses que foram bem-sucedidas na sua adaptação à espécie humana, ganhando potencial para transmissão humano-humano. Para prevenir uma potencial futura pandemia, a OMS estabeleceu o seu ‘blueprint’ de doenças infeciosas emergentes para as quais considera crucial desenvolver esforços de R&D urgentes (13). Na lista destes patogéneos incluem-se várias doenças causadas por vírus de RNA: a febre hemorrágica de Crimeia-Congo, o ébola, marburg, febre de Lassa, MERS, SARS, Nipah, Henipa, RiftValley e Zika. Isto significa que é necessário gerar evidência relativa a estas doenças para suportar decisões de saúde pública que seja necessário tomar no contexto de uma ameaça pandémica. No entanto, a OMS menciona também a doença X, que considera a hipótese de ser um vírus desconhecido a gerar a próxima grande pandemia (como foi o caso do SARS-CoV-2, que desconhecíamos). Para poder abordar essa doença X, é necessário gerar evidência em contexto animal e identificar e prever futuros eventos zoonóticos. Assim, a vigilância e geração de dados genómicos para estes vírus junto dos seus hospedeiros animais e na interface humano - animal é altamente relevante para a prevenção de uma potencial futura pandemia. Neste contexto de prevenção de uma futura pandemia, é necessário adotar uma visão de One Health para guiar futuros esforços de prevenção de spillover de doenças infeciosas emergentes (14). Autoras: Ana Abecasis MD, PhD, PharmD:
Marta Pingarilho, PhD:
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Fevereiro 2024
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