A Saúde Pública, como especialidade multidisciplinar, tem competências na área da Saúde Mental em várias vertentes: advocacia em questões de prevenção primordial e comunicação pública, planeamento de base populacional e/ou institucional, investigação, gestão de programas direcionados a vários níveis de prevenção e, enquanto autoridade de saúde, na dinâmica associada à Lei de Saúde Mental. As abordagens populacionais da saúde mental são diversas e podem ser definidas como atividades/intervenções não clínicas direcionadas à melhoria de resultados em saúde mental e dos seus determinantes de saúde. Designam-se de populacionais porque têm como grupos-alvos indivíduos com características demográficas, socioeconómicas, de utilização de serviços de saúde, ou outras, em comum. Para além das abordagens mais tradicionais que se focam em determinantes de saúde diretamente ligados à saúde mental, há evidência (1) que sugere que intervenções destinadas à redução do número de eventos de vida traumáticos e da exposição a estímulos nocivos psicossociais podem ter um impacto significativo na saúde mental coletiva das populações. Deve ser salientado o importante papel dos estudos quasi-experimentais em intervenções em saúde mental, algo ainda incipiente no nosso país e que poderá complementar de forma importante o conhecimento científico atual. Apesar de existir fundamento claro para intervenções regionais/sub-regionais em saúde mental, as dificuldades na medição do seu impacto, na replicação das mesmas e no seu financiamento contínuo, configuram barreiras importantes à sua implementação. O foco local em Entre Douro e Vouga I nas questões de saúde mental surge de duas necessidades. A primeira é que se compreendeu que a especialização por parte de um médico numa Unidade de Saúde Pública permite um maior conhecimento, maior domínio e maior eficiência de resposta. A segunda é que, felizmente, criou-se uma dinâmica local à volta de uma equipa comunitária multidisciplinar de resposta a casos complexos que não reuniam critérios para internamento involuntário. O somatório das duas com o meu interesse individual em ser facilitador na área fez com que ficasse responsável por colmatar estas necessidades. Contudo, é difícil medir impactos populacionais na saúde mental. Aliás, é uma área de grande complexidade no que respeita a definição de métricas de avaliação e homogeneização das mesmas, de forma a possibilitar a comparação de dados a nível internacional (2). O que conseguimos a nível local foi otimizar uma resposta estrutural face a casos de doença mental complexa, enquadrando-se sobretudo na prevenção terciária, com algum componente de prevenção secundária por via de sinalização de situações por parte de profissionais de saúde e forças de segurança. Isto será apenas o início. O que decorre de forma favorável neste momento a nível local é uma maior articulação ao nível da prevenção terciária através de uma equipa multidisciplinar que envolve Saúde Pública, Psicologia, Psiquiatria, Equipa de Tratamento (ICAD), Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados (URAP), ECASM (Equipa Comunitária de Acompanhamento em Saúde Mental), Tribunal, Ministério Público e Direção Geral de Reabilitação e Serviços Prisionais (DGRSP). Destaco também o trabalho feito pelos múltiplos profissionais da Unidade de Saúde Pública envolvidos na Saúde Escolar e especificamente o trabalho feito pelas Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC), não só na Saúde Escolar como nos Cursos de Preparação para o Parto e Parentalidade, identificados como uma das melhores práticas num ponto crucial do ciclo de vida e integradas na lógica de prevenção primária. Não posso deixar de citar também o trabalho multidisciplinar nos grupos psicoterapêuticos para a depressão e ansiedade da URAP, envolvendo não só a Psicologia, mas também a terapia ocupacional, fisioterapia e nutrição, pelo impacto global destas perturbações na saúde dos utentes. As recentes reformas da Saúde Mental em Portugal privilegiam a transição comunitária de cuidados, algo que faz sentido e era até agora insuficiente. Mas faltam abordagens multinível direcionadas à redução do estigma, à sensibilização e campanhas específicas que abordem problemas como a doença mental no sexo masculino, a qual continua a ser subdiagnosticada e identificada tardiamente, revelando-se frequentemente em associação com outro tipo de manifestações, tais como violência e/ou dependências. Adicionalmente, a crise dos recursos humanos no Serviço Nacional de Saúde não é exceção na Saúde Mental e existem estruturas à espera desses recursos. Existem boas práticas reconhecidas e falta concretizá-las ou melhorá-las. O elevado retorno do investimento nestas áreas é sobejamente reconhecido (3). O que falta fazer? Ainda demasiado. Usando a provocação de um artigo recente: a prevenção primária em psiquiatria não é ficção (4). Um dos problemas que continuaremos a ter é o tempo necessário para que os benefícios da prevenção primária se possam revelar e ter impacto, particularmente na Saúde Mental. Na verdade, tendo em conta uma meta-análise recente, a idade de aparecimento de várias doenças mentais centra-se, em média, à volta dos 14 anos (5), o que coloca o máximo ênfase na importância das intervenções no início do ciclo de vida e ao longo dos primeiros anos de vida. Estas considerações são fulcrais se queremos tornar eficaz a prevenção primária em saúde mental, algo já sinalizado a nível do Serviço Nacional de Saúde, mas que merece novo olhar e reforço. Outra faceta é a atomização social que vivemos à custa de determinantes como o envelhecimento da população e o advento das redes sociais. Numa revisão sistemática que envolveu no total noventa estudos e mais de dois milhões de observações, tanto o isolamento social como a solidão foram associados a um risco aumentado de mortalidade por todas as causas e mortalidade por cancro (6). O foco institucional e populacional no isolamento social e na solidão pode ajudar a melhorar o bem-estar das pessoas e o risco de mortalidade. Aliás, um relatório do Surgeon General americano intitulado “Our epidemic of loneliness and isolation” de 2023 destaca claramente a intersecção dos efeitos perniciosos de envelhecimento, vivência digital e atomização comunitária (7). A ligação social surge como eixo agregador de várias estratégias para responder a esse problema (Fig.1). Fig. 1. Os seis pilares para melhorar a conexão social. Retirado de Office of the Surgeon General. (2023). Our Epidemic of Loneliness and Isolation: The US Surgeon General’s Advisory on the Healing Effects of Social Connection and Community [Internet]. Existem ainda barreiras ao acesso e necessidades culturais, linguísticas e sociais específicas que oferecem obstáculos ao planeamento e resposta dos serviços de saúde mental. Não há uma resposta universal num país com heterogeneidade marcada, mas sim princípios universais para orientar respostas distintas. No contexto da reforma das Unidades Locais de Saúde, os Serviços de Saúde Pública poderão ajudar os Serviços de Saúde Mental. Na componente de planeamento, monitorização e avaliação dos respetivos projetos/programas, a Saúde Pública tem um papel essencial na identificação de fenómenos heterogéneos na população, na definição de alvos prioritários de intervenção e na avaliação do impacto na população, para apoiar a tomada de decisão informada e o planeamento a longo prazo das Direções das ULS. Também terá um papel relevante na articulação comunitária, na ponte com os Planos Municipais de Saúde das Autarquias no âmbito da descentralização de competências e na intervenção, com a visão transversal e com os múltiplos atores sociais relevantes para esta temática tão relevante. Referências Bibliográficas:
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Fevereiro 2024
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