13/10/2017 0 Comentários A Saúde Pública e as catástrofesIntrodução “ O conhecimento e a percepção do impacto dos desastres naturais na comunidade, é o pilar para a implementação de politicas e decisões, no sentido da minimização do risco.” (1) Os desastres naturais e as situações de emergências humanitárias complexas têm vindo a assumir um papel cada vez mais relevante se tivermos em conta os efeitos das alterações climáticas e da vulnerabilidade dos povos, devido à crescente urbanização, sem planeamento adequado e sem ter em conta as fragilidades dos sistemas, as situações de terrorismo e de conflito, bem como aos desastres naturais, todas elas geradoras de grande número de mortos, feridos, e desalojados, com elevado custo económico na sociedade e nas nações. Os dados referentes ao impacto das catástrofes nos vários continentes são por vezes escassos e de difícil acesso de modo a permitir os estudos epidemiológicos e a investigação necessários ao planeamento e mitigação destes eventos. A preocupação crescente com este problema tem levado várias organizações como as Nações Unidas através do Office for Disaster Risk Reduction (UNISDR), a Organização Mundial de Saúde (WHO) a Cruz Vermelha Internacional (RC/RC) e o Banco Mundial a discutir o tema e a criar estruturas de desenvolvimento e apoio, seja através da preparação de equipas técnicas de intervenção no terreno, seja através do apoio na criação e implementação de projectos que visam diminuir o(s) risco(s) e as vulnerabilidades, apostando na prevenção, planeamento e mitigação dos diferentes tipos de desastres. (2; 3) Os principais factores que contribuem para a ocorrência e gravidade dos desastres naturais e emergências complexas nos países em desenvolvimento, são a vulnerabilidade humana resultante da pobreza e das desigualdades sociais, a degradação ambiental, proveniente do fraco ou inexistente aproveitamento das terras e o rápido crescimento populacional, principalmente nos grupos mais desfavorecidos. (4) Definição, tipificação e ciclo das catástrofes As várias definições de catástrofe englobam de uma forma geral a capacidade de resposta dos serviços face às necessidades ocasionadas por três grandes grupos de situações: as de origem natural, as tecnológicas e de origem humana e as emergências complexas (figura 1), não limitando ao número de vítimas que ocasionam, mas sim à capacidade de resposta de cada sistema ou entidade. (5; 6) Figura 1 - Tipificação das catástrofes . Leiva, C. A.- Assistencia Sanitaria a Múltiples Víctimas y Catástrofes. 1st ed. Sevilla. SAMU, 2012 O ciclo da catástrofe, define as fases de pré, após e durante o incidente, pontos de referência para as diferentes actividades a desenvolver em cada uma das fases, com diferentes tempos de duração que abrangem a prevenção, planeamento, mitigação, resposta, e recuperação. As actividades de cada um destes sectores, devem constar dos planos de intervenção de cada entidade ou agente da protecção civil (figura 2), onde a Saúde Pública através da epidemiologia, do planeamento, da intervenção comunitária e das funções de Autoridade de Saúde, tem um papel fundamental a desempenhar. (5; 6) Figura 2 - O ciclo da Catástrofe. Ciottone, G. R. –Ciottone’s Disaster Medicine. 2nd ed. Philadelphia. Elsevier, 2016. A necessidade de estratégias a nível mundial que evidenciassem a prevenção, planeamento ou preparação e mitigação dos efeitos das situações de catástrofes, fez com que desde os anos oitenta, as nações unidas discutissem e aprovassem com as partes interessadas, planos de actuação e intervenção para a redução do risco de desastres, aprovados nas conferências mundiais. A última realizada em 2015 no Japão que deu origem ao “Relatório de Sendai” para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030. Neste documento fica claro o compromisso dos países e organizações, no sentido de reduzir o risco e aumentar a resiliência dos povos face às catástrofes, como contributo para um desenvolvimento sustentável e para a erradicação da pobreza, privilegiando em simultâneo a cooperação internacional nas áreas da assessoria estratégica e coordenação de esforços e a implementação de políticas e estratégias que a todos os níveis, fortalecessem a partilha de conhecimento e saberes. (2) A Saúde Pública A Saúde Pública, tem na sua génese, o conhecimento e a capacidade de desempenhar um papel fundamental nas situações de catástrofe, através das equipas pluridisciplinares de profissionais que no dia-a-dia exercem funções nas Unidades de Saúde Pública, principalmente os Médicos da especialidade. Todas as actividades estão contempladas na legislação, em Portugal, através da lei de bases da Saúde, Lei 48/90 de 24/08/1990, nas bases XIX e XX, e pelo Decreto-Lei n.º 82/2009 de 02/04/2009 e Decreto-Lei n.º 135/2013 de 4 de Outubro que estabelecem as competências e os princípios de actuação em “situações graves de emergência” das “Autoridades de Saúde” na gestão, administração, planeamento e monitorização do estado de saúde e de doença das populações, na sanidade internacional e na salubridade do meio ambiente entre outras. O desempenho da saúde pública ocorre não só como resposta às necessidades e problemas evidenciados, mas integrado no conceito da “Public Health Intelligence”, que prevê a sua antecipação, através de um planeamento estratégico, tendo em conta o risco evidenciado por determinadas regiões ou comunidades. (7) O conceito de “Public Health Intelligence” que representa “The process of understanding and analysis of public health information in support of population, healthcare planning and healthcare outcomes” (13) permite a organização da resposta dos serviços de saúde na adaptação ao inesperado e às situações espectáveis de acordo com a análise de risco e a vulnerabilidade dos sistemas de modo a minimizar o impacto. (7) Até hoje os serviços de Saúde Pública no seu geral, não têm evidenciado uma participação activa e de liderança no processo, o que constitui uma lacuna que urge preencher face às competências dos Médicos de Saúde Pública e à mais valia que constituem para o desempenho dos serviços de saúde em situações de catástrofe. O impacto das situações de catástrofe na saúde A teoria da gestão do caos define o impacto como sendo um agente externo que ao actuar sobre um sistema modifica o seu nível de organização, tendo em conta a vulnerabilidade e elasticidade desse mesmo sistema. A dimensão do impacto é dada em extensão, intensidade e tempo de duração traduzindo-se no desequilíbrio existente entre as necessidades e os recursos ao longo do tempo. (5) O impacto na saúde traduz-se por um aumento das necessidades numa altura em que os recursos se encontram diminuídos e a organização habitual e os projectos de promoção da saúde em vários níveis foram interrompidos ou descontinuados, devido à rotura dos sistemas de saúde, e da matriz social e económica (figura 3). (8) Figura 3- O Impacto das Catástrofes na Saúde. Fonte: Toole, M.J.; Waldman, R.J. – Complex Emergencies. In Skolnick, Richard L.. - Essentials of Global Health. 3 ed.Jones and Bartlett Publishers, 2012.539-613 Catástrofes existirão sempre, podendo surgir de forma inopinada como uma ameaça à vida quotidiana. Se conhecermos e percebermos o seu impacto na comunidade poderemos estabelecer estratégias e políticas no sentido de minimizar riscos e consequências, reforçando as vulnerabilidades identificadas de acordo com a natureza ou tipo do desastre, através da adequação das estratégias à densidade populacional, ao estado prévio de saúde e de nutrição da comunidade, ao clima, à organização dos serviços de saúde e à melhoria dos sistemas de alerta existentes. (4; 1) A intervenção requer a ampla participação das estruturas da comunidade afectada. A intervenção humanitária internacional, deve respeitar, fortalecer e apoiar a intervenção local. Trata-se de um problema de incidência mundial. Os serviços de saúde como um dos principais sectores com intervenção directa, necessita de treino e protocolos de actuação para uma resposta rápida, adequada e num ambiente por vezes adverso e inesperado. E isto é saúde Pública. (5) Aos efeitos do impacto imediato na saúde devido a lesões ou casos de morte que surgem como resultado do incidente, acrescem os efeitos provocados pela rotura dos serviços necessários do dia-a-dia, à perda económica e social, à destruição de vias de comunicação, água, electricidade ou telefones, aos problemas de abastecimento dos alimentos e ao aparecimento de grande número de desalojados. O número inesperado de mortes ou de doença que podem causar pode ultrapassar a capacidade de reposta dos serviços de saúde, já débeis e por sua vez afectados estruturalmente, no seu reabastecimento e nas actividades de rotina e de prevenção. A longo prazo vai ter expressão no aumento da morbilidade e da mortalidade, devido ao impacto no meio ambiente, no aumento do risco de doenças infectocontagiosas e da morbilidade por essa causa, com aumento do número de mortes prematuras e a diminuição da qualidade de vida. (4) A saúde mental também sofre repercussões devido ao trauma, ansiedade, medo, comportamentos anti-sociais, depressão e risco pós traumático. Ocorre o aparecimento dos distúrbios alimentares devido à escassez e qualidade dos alimentos, por fome ou défice vitamínico. Aumenta o risco de doenças transmissíveis devido ao número de desalojados e falta das condições higieno-sanitárias e de nutrição, com agravamento das doenças crónicas e da insalubridade do meio ambiente. (4) E isto continua a ser Saúde Pública. Os desastres naturais e as emergências complexas originam picos na mortalidade, onde às causas expectáveis, avaliadas pelo perfil de mortalidade da região, se associam as causas atribuíveis à situação ou evento sendo que estas últimas podem ser directas (traumatismo ou lesão) enquanto as indirectas são provenientes do agravamento de doenças crónicas e da falta de terapêuticas, do fornecimento de alimentos, da diminuição da acessibilidade aos serviços de saúde e da quebra dos sistemas de vigilância, de prevenção e da cadeia de fornecimento de bens. Trata-se de um situação onde a saúde pública deve ter um papel fundamental na prevenção, no planeamento da resposta e na mitigação dos efeitos ou consequências não só na resposta imediata de emergência mas na manutenção e garantia dos serviços de saúde essenciais como a vigilância epidemiológica, vacinação, malnutrição e apoio aos grupos vulneráveis. É necessário conhecer a mortalidade a morbilidade mas também calcular a efectividade da resposta que é dada não só pelos serviços locais mas também pela ajuda humanitária internacional, onde protocolos de desempenho, actuação e coordenação de todas as forças no terreno, se tornam imperscindiveis. (9) A minimização do impacto requer uma resposta global organizada ao nível do pré hospitalar onde os cuidados de “life saving” no local do incidente, estão amplamente identificados como factores de redução da morbilidade, mortalidade e incapacidade futuras. O transporte adequado das vítimas para hospitais de referência é outro dos pilares necessários para uma boa resposta cirúrgica, de cuidados intensivos e de trauma, seja em hospitais de campanha ou na rede de hospitais existente. Ter uma liderança eficaz, gerir eficazmente o risco, ter um planeamento estratégico da saúde, criar parcerias e saber comunicar, enquanto se procura capacitar as comunidades aumentando a sua resiliência e literacia, são os pilares onde assenta a capacidade de ter uma resposta adequada e eficaz para a preparação, intervenção, recuperação, reabilitação e reconstrução a nível local, regional e mundial, nas situações de catástrofe.2 Situações RecentesAs recentes tragédias de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e dos atentados de Barcelona entre outros e os inúmeros eventos de mass gathering, ocasionados um pouco por todos os lados sejam eles de cariz religioso, desportivo ou musicais, trazem para a ribalta o tema das catástrofes e do papel da saúde neste tipo de eventos. A Medicina de Catástrofe, subespecialidade ainda não valorizada de modo adequado, concentra no seu âmago toda a estratégia dos serviços e da actuação em saúde, particularmente na área da Saúde Pública. O planeamento e execução das intervenções dos serviços de saúde, neste tipo de eventos com probabilidade de gerar um número elevado de vítimas, necessita de um acompanhamento de proximidade, particularmente na fase de actuação, de modo a actuar de acordo com as necessidades e antecipando os riscos. O evento religioso de grandes dimensões como o 13 de Maio em Fátima mobilizou inúmeros recursos nomeadamente da área da saúde. No entanto apesar da existência de hospitais de campanha e unidades móveis fora do recinto, pertencentes a várias instituições e organismos, a ausência de caminhos de emergência e de equipas móveis sinalizadas dentro do recinto, bem como a informação aos milhares de peregrinos de como deviam sinalizar ou proceder em caso de emergência, levou a que se verificassem cenários de vítimas arrastadas, empurradas e transportadas de qualquer modo, pelos familiares amigos ou por quem estava ao seu lado, largas distâncias até terem hipótese de serem socorridas. Nos incêndios ocorridos em Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos, várias questões se podem colocar, tais como a intervenção da saúde nos vários sectores, a avaliação dos planos caso existam, a comunicação entre serviços e com a comunidade, o funcionamento do sistema de alerta, as diferenças entre fogos florestais e os outros tipos de catástrofes e o que resultou desta experiência que possa contribuir para melhorar a actuação dos serviços de saúde no futuro. Em conclusão, a saúde pública tem um desempenho chave na resposta às situações de desastres através da monitorização e vigilância do estado de saúde e de doença da comunidade, da avaliação e gestão do risco, da implementação de estratégias de minimização do mesmo, de gestão da informação para o público e para os media, no reforço das políticas de garantia dos níveis de saúde da população e na gestão e coordenação da resposta dos serviços de saúde e de emergência, de modo a irem de encontro às necessidades da comunidade de forma equitativa. (4; 10) A coordenação do sistema de saúde, é extremamente importante e deve estar organizada e preparada de modo a dar resposta às necessidades de uma forma global, com entendimento entre as varias entidades presentes e necessárias à resposta, estabelecendo parcerias de modo a criar uma resposta efectiva e com menos falhas numa ocasião em que o próprio sistema de saúde pode estar afectado e em que as solicitações são maiores do que as habituais. (10) A actuação necessita de uma boa comunicação e trabalho conjunto no treino das equipas que vão operar no terreno, através de um reconhecimento e identificação prévios dos obstáculos e riscos existentes, aliados á formação dos profissionais e a realização periódica de exercícios para reavaliação dos planos de emergência. Os serviços de saúde devem estar organizados e preparados para prevenir, mitigar, responder e recuperar da multiplicidades de situações que as catástrofes podem ocasionar e à necessidade de adaptação da organização e coordenação de modo a responder às necessidades das populações. (10) A Saúde Pública, devido ao seu perfil e funções, é uma das especialidades-chave com capacidade de resposta em situações de catástrofe. Assim o reconheçam os seus profissionais e as organizações públicas e governamentais, capacitando-os e integrando-a como uma subespecialização nos programas e colégios da especialidade bem como nos programas e actividades dos serviços de saúde. A comunidade internacional tem nos últimos anos estado ciente do problema. Compete-nos também a nós, Médicos de Saúde Pública, dinamizarmos os serviços, de acordo com as nossas competências e funções. A estarmos organizados e preparados para prevenir, mitigar, responder e recuperar da multiplicidade de situações que as catástrofes podem ocasionar e a dar resposta às necessidades de adaptação da organização e coordenação, de modo a responder às necessidades das populações. (10)
Filomena Horta Correia
Assistente Graduada Sénior Saúde Pública, Mestre European Master of Disaster Medicine ) IX EDITION, Delegada de Saúde ACES Central e Coordenadora do Núcleo de Rastreios da ARS Algarve
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