CITAÇÃO “Human reproduction is neither the problem, nor the solution. When we put gender equality and rights at the heart of our population policies, we are stronger, more resilient, and better able to deal with the challenges resulting from rapidly changing populations.” “Chasing fertility targets and trying to influence women’s reproductive decision-making will only end in failure. History has shown that such policies are rarely effective and undermine women’s rights. Investing in people and their potential is the surest path to prosperity and peace.” “Women’s bodies should not be held captive to population targets.” REVIEW O relatório State of World Population é a principal publicação anual da UNFPA, desde 1978. Aborda questões emergentes no campo da saúde e direitos sexuais e reprodutivos, explorando potenciais desafios e oportunidades para o desenvolvimento global. A edição deste ano, intitulada 8 Billion Lives, Infinite Possibilities - The case for rights and choices, inclui contribuições de dois parceiros da ONU: a International Organization for Migration e a Population Division of the Department of Economic and Social Affairs. Nesta edição, foram reunidas as perspetivas de especialistas independentes com o objetivo de explorar a perceção do público, de políticos, de investigadores, entre outros, relativamente às tendências populacionais atuais, e de que forma essa perceção se reflete em comportamentos que podem influenciar a saúde e os direitos de género, sexuais e reprodutivos.
Salientamos aqui os principais pontos-chave do relatório deste ano: De acordo com dados de 68 países: 24% das mulheres são incapazes de dizer não ao sexo e 11% são incapazes de tomar decisões específicas sobre contraceção. Cerca de 257 milhões de mulheres em todo o mundo não tem acesso a contraceção segura e confiável. Uma investigação realizada em oito países revelou que pessoas que foram expostas a qualquer informação sobre a população mundial, através da comunicação social ou de conversas informais, tinham a opinião de que a contagem da população mundial se encontra muito elevada. A demografia global está a mudar rapidamente: 2/3 das pessoas vivem em contextos de baixa fertilidade, enquanto 8 países são responsáveis por metade do crescimento projetado da população mundial até 2050 (República Democrática do Congo, Egito, Etiópia, Índia, Nigéria, Paquistão, as Filipinas e a República Unida da Tanzânia), reorganizando drasticamente a anterior classificação mundial dos países mais populosos. Atribuir à fertilidade a causa para as alterações climáticas não levará à responsabilização dos países mais emissores de carbono. De 8 mil milhões de pessoas, cerca de 5,5 mil milhões não ganham dinheiro suficiente - cerca de 9€/ dia - para contribuir significativamente para as emissões de carbono. Segundo um estudo recente da ONU, uma maior igualdade de género no trabalho poderia ajudar a equilibrar a economia em sociedades mais envelhecidas e com baixa fertilidade, ao invés do estabelecimento de metas e estratégias para que as mulheres tenham mais filhos. Dados recentes indicam que a ansiedade relacionada com o excesso populacional tem levado os governos a adotar políticas destinadas a aumentar, diminuir ou manter as taxas de fertilidade – que se têm revelado ineficazes e violam os direitos das mulheres. Muitos países iniciaram programas de promoção de 'famílias maiores', através da oferta de incentivos financeiros às famílias. No entanto, continuam a apresentar taxas de natalidade abaixo dos dois filhos por mulher. Os esforços para retardar o crescimento populacional através da esterilização forçada ou contraceção coercitiva violam grosseiramente os direitos humanos. O planeamento familiar não deve ser usado como uma ferramenta para atingir as metas de fertilidade – mas sim como uma ferramenta de capacitação do indivíduo. As mulheres devem poder escolher quando engravidar e quantos filhos ter, livres de constrangimentos ou da pressão de especialistas ou autoridades. Por fim, o relatório recomenda fortemente ao governos que estes instituam políticas de igualdade de género, incluindo melhoria dos programas de licença parental, benefícios fiscais para quem tem filhos, políticas que promovam a igualdade de género no trabalho e o acesso universal à saúde, assegurando direitos de género, sexuais e reprodutivos. Propõe ainda uma fórmula que, aplicada, levará a ganhos económicos, e permitirá criar sociedades mais resilientes e capazes de prosperar, independentemente das novas tendências e mudanças populacionais que possam surgir a nível global no futuro. Autoria Teresa Carvalho Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso
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7/12/2022 0 Comments COISAS DE LOUCOS Quando a jornalista Catarina Gomes escreveu a reportagem sobre os últimos doentes vivos internados no Hospital Miguel Bombarda, acompanhou 24 homens e mulheres herdeiros de um tempo em que o confinamento surgia como a primeira resposta da medicina e da sociedade à doença mental. Estas pessoas viviam no hospital há uma média de 40 anos e tinham duas coisas em comum: todos haviam sido diagnosticados com uma patologia do foro psiquiátrico e todos tinham a férrea vontade de ali permanecer. O impacto desta experiência foi tal que Catarina quis conhecer também as histórias dos doentes mortos. Regressou aos arquivos do hospital e encontrou, no sótão do edifício, uma caixa empoeirada que ficara esquecida. Ao abri-la, deparou-se com dezenas de objetos que haviam pertencido, décadas antes, a indivíduos que por ali tinham passado ou vivido. Nascia assim o Coisas de Loucos. Coisas de Loucos começa por fazer uma breve revisão histórica. As melhores estimativas apontam para que cerca de 66 mil indivíduos terão passado pela instituição em toda a sua história. Miguel Bombarda (1851-1910) foi diretor do Hospital de Rilhafoles (como anteriormente era designado o Hospital Miguel Bombarda) de 1892 até à sua morte, apostando na melhoria das condições de assistência e tratamento dos doentes sob os preceitos da psiquiatria alemã, com abordagens inovadoras e imprimindo dinamismo à especialidade através de um vasto corpo profissional e académico. Contextualizada a sua origem, o manuscrito é de seguida fundamentalmente uma coletânea de pequenas histórias. Através de uma narrativa semi-histórica, Catarina Gomes relata os eventos das vidas dos seus donos através dos seus objetos, ora recorrendo aos registos hospitalares, ora contextualizando com acontecimentos históricos, ora preenchendo as lacunas com questões e suposições pessoais que embelezam a história sem a caricaturar. Inicialmente, a autora procurara os doentes antigos mais célebres, descritos como mais perigosos ou como mais loucos. Entre estes “ilustres”, surgiam nomes como o de José Júlio Costa, o homem que assassinara o presidente Sidónio Pais, Ângelo de Lima, poeta da geração de Fernando Pessoa, Valentim de Barros, bailarino homossexual internado pela sua orientação sexual, e, claro, Aparício Rebelo dos Santos, o homem que matara o Doutor Bombarda. Contudo, estes perderam relevância aquando da descoberta da caixa. Os objetos encontrados eram itens que qualquer um poderia trazer consigo: o molho de chaves, a caneta, os óculos, a carteira, os papéis rabiscados, o documento de identificação. O fascínio pela banalidade na doença mental tornava-se uma espécie de voyeurismo intelectual, uma vontade de compreender a loucura como se fosse possível contorná-la, como um buraco na estrada. Antes de serem forçados ao confinamento, os internados do Hospital Miguel Bombarda tiveram família, amores, ocupação, planos para o futuro. Pela mestria das palavras de Catarina Gomes, estes indivíduos são momentaneamente resgatados do esquecimento e do anonimato. O fio condutor ao longo das páginas é a lente aplicada a estas histórias exumadas, uma perspetiva sistematicamente humanizadora em que a autora nos traça os contornos destas pessoas, as suas qualidades e defeitos, os seus valores, crenças e pensamentos, numa estrutura biográfica que evoca empatia. Sem nunca perder o pendor literário, a autora consegue que, quer o tema, de uma forma global, quer cada uma das histórias relatadas, o sejam de uma forma imensamente digna e respeitadora, sem menorizar sofrimentos mas também sem os romantizar. São histórias que invocam a compreensão do outro, a desmistificação do doente mental como um ser humano complexo e imperfeito. A própria autora expressa que “à procura do excecional na loucura, encontra-se o absolutamente corriqueiro. A maior parte dos que sofrem de doença mental não são artistas nem criminosos, nem geniais, nem perigosos. São como nós. Somos nós”. Quer de um ponto de vista discriminatório, quer de um ponto de vista de saúde pública, é inegável a efetividade de uma abordagem mais holística que considere as circunstâncias e motivações específicas do indivíduo e ofereça uma variedade de opções de tratamento e suporte. Este é um livro que cruza psiquiatria e saúde mental, direitos humanos e ética, valores sociais e culturais de um país que, como muitos outros durante muito tempo, encarou a doença mental como algo inevitavelmente condenado à vergonha, à ocultação e ao exílio entre quatro paredes. Fazendo uso de uma estrutura linear e de uma linguagem clara e simples, por vezes até popular, do leitor espera-se que mantenha a abertura de pensamento e a disponibilidade para rever os seus próprios conceitos de doença mental. Autoria José Durão Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes “À procura do excecional na loucura, encontra-se o absolutamente corriqueiro. A maior parte dos que sofrem de doença mental não são artistas nem criminosos, nem geniais, nem perigosos. São como nós. Somos nós."
A economia comportamental é uma área que estuda a influência de fatores psicológicos, emocionais, cognitivos e sociais na tomada de decisão. Por outras palavras, esta disciplina esclarece como são feitas as escolhas das pessoas, com base em experiências pessoais, hábitos e regras simplificadas. Este é o tema central do livro Nudge, onde o autor desenvolve este conceito através de casos práticos, em questões relacionadas com a saúde, a riqueza e a felicidade. Nudge pode ser visto como o empurrão que nos ajuda a tomar as melhores decisões, em detrimento de outras. Estes pequenos fatores estão presentes em várias situações diárias das nossas vidas, desde a colocação estratégica de doces nas caixas de supermercado até às tentativas de upselling nos restaurantes. Porém, muitas vezes, esses estímulos persuasivos podem levar as pessoas a tomar decisões que não são as melhores para si. Um dos termos abordados na primeira parte do livro é a chamada arquitetura da escolha, conceito criado pelos próprios autores, onde nos são demonstradas as várias maneiras pelas quais as escolhas podem ser apresentadas aos indivíduos e o impacto que esta apresentação pode ter na tomada de decisão. Os autores defendem que o Estado pode intervir nas decisões da sua população, em prol da sua melhor decisão, mas mantendo sempre a liberdade de escolha, posição também já defendida por outros autores (1). A definição dos dois sistemas do pensamento humano está também bem descrita na parte inicial do livro, anteriormente definida num livro intitulado Thinking, Fast and Slow. Os sistemas definidos são o sistema automático e o sistema refletivo. Pela influência destes dois sistemas, o autor enumera uma série de vieses que influenciam a escolha dos cidadãos. Na parte relativa ao dinheiro e às poupanças, o autor começa por abordar soluções que poderão ajudar as pessoas a gerir as suas poupanças e refere, também, os mercados de crédito e o investimento ingénuo e as suas ligações com a arquitetura da escolha. Já na terceira parte, é abordado o tópico da saúde, onde o autor faz uma revisão do plano de prescrição de medicamentos do governo de George W. Bush e retrata também como será possível aplicar o conceito de nudge na proteção ambiental e planetária. Na quarta parte, o autor dá enfoque à arquitetura das escolhas que deve ser implementada nas escolas, de forma a que os alunos consigam tomar as melhores decisões possíveis e aperfeiçoar o seu percurso académico. Este tópico é, sem dúvida, atual e encontra-se bastante patente em várias áreas como a economia, a medicina, a saúde pública, a política, entre outras. Este livro informa sobre uma forma adicional de analisar o comportamento, o pensamento e a psicologia nos humanos e retirar conclusões para a melhor tomada de decisão. A sua integração com a Saúde Pública é facilmente depreendida, no sentido em que a economia comportamental poderá fornecer uma perspetiva empírica de como os indivíduos tomam decisões e, desta forma, atingir impactos significativos nos seus comportamentos (2). São já muitas as iniciativas governamentais colocadas em prática que incorporam conceitos de economia comportamental para melhorar a saúde, a tomada de decisão e a eficiência governamental na elaboração de políticas de saúde (3). Bibliografia
Autoria Joana Carvalho Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes “The first misconception is that it is possible to avoid influencing people’s choices.” “Just as no building lacks an architecture, so no choice lacks a context.” “Doctors are crucial choice architects, and with an understanding of how Humans think, they could do far more to improve people’s health and thus to lengthen their lives.” Neste livro, escrito por Bruno Maia, médico especialista em Neurologia e Medicina Intensiva e ativista político, social e cultural, é abordada a tensão e conflito entre a prestação pública e a oferta privada de serviços de saúde, bem como o posicionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) perante os desafios que se avizinham. Símbolo de progresso e de oportunidade de melhoria social, o SNS tem contribuído para contornar a desigualdade social e a miséria sanitária, combatendo iniquidades. Citando António Arnaut, “o SNS não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de política social, constituindo a maior reforma social do século XX português”. Contudo, o autor coloca o dedo na ferida, ao afirmar que a sua atual organização e funcionamento são escolhas políticas. Reflete sobre a crise a que temos vindo a assistir: a desvalorização do sector público, que contrasta drasticamente com o crescimento do sector privado, um modelo mais eficiente e robusto, altamente competitivo (e não complementar) de prestação de cuidados. Ao longo do livro são discutidos os três modelos de sistemas de saúde: liberal (vigente nos EUA, baseado na prestação privada de cuidados, em que o estado assegura apenas os serviços mínimos), o estatizante (criado na URSS, baseado no financiamento público da totalidade dos cuidados, sem lugar à iniciativa privada) e o misto (como o do SNS, em que o Estado assegura a cobertura a toda a população, admitindo coexistência de iniciativa privada, como as convenções). Advoga que o problema central dos sistemas de saúde privados não são os custos per si nem o mau desempenho, mas sim a falta de acesso equitativo dos cidadãos. Corrobora esta afirmação com exemplos da Kaiser Family Foundation de 2019, que estimou que um em cada cinco norte-americanos estaria em risco de insolvência familiar por dívidas com cuidados de saúde. Argumenta ainda as diversas consequências do sistema liberal: como no privado, a saúde não é encarada com um direito social, mas como um bem de consumo, devendo ser lucrativa e baseada num pensamento de venda de serviços e não de necessidades. Mais à frente, reforça a problemática da suborçamentação crónica do SNS que tem conduzido à acumulação de dívida e à intrincada gestão de buracos orçamentais. Esta limitação é agravada pelo atual contexto epidemiológico de envelhecimento populacional, com uma crescente prevalência de doenças crónicas, traduzida num gasto superior de medicação, exames de diagnóstico e consultas. O autor critica ferozmente esta suborçamentação como uma escolha política: tendo em conta o aumento do PIB, refere ser difícil de aceitar que a suborçamentação do SNS seja uma fatalidade ou um imperativo económico, enumerando as suas consequências e a acumulação de ineficiências. Refere que Portugal gasta menos em saúde por habitante do que a média dos países da OCDE, sendo este acréscimo de custos suportado pelas famílias. Ao longo do livro, argumenta que a promoção do pluriemprego tem sido uma escolha política, registando-se cada vez menos exclusividade no SNS e mais vínculos permanentes ao sector privado. Retrata o círculo vicioso em que vivemos: se os médicos reduzem o horário no SNS para prestação no privado, o SNS fará menos exames, consultas e cirurgias, aumentando as listas de espera. Consequentemente, para o SNS assegurar o tempo de espera legalmente definido, terá de recorrer a convenções no privado, serviços estes realizados frequentemente por esses mesmos médicos que trabalhavam no setor público e que agora estão no privado. Bruno Maia resume que quanto menor for o investimento no SNS, menor será a remuneração e valorização no setor público, impulsionando mais profissionais a recorrer ao pluriemprego, transitando doentes e procedimentos para o privado, cujo pagamento acaba na mesma por ser assegurado pelo Estado. Outro dos pontos abordados é o oligopólio partilhado pelos interesses corporativos do privado, alimentado promiscuamente pelas falhas sucessivas do SNS. O autor faz uma historiografia das Parcerias Público Privadas (PPP) e dos conturbados processos associados. Enfatiza que entre 2010 e 2016, o financiamento público dos privados através de regimes de convenções, aumentou de 190 para 405 milhões de euros, referindo que por cada dez euros de orçamento da saúde, quatro euros terminam no privado. Acresce a suborçamentação do SNS, em que as falhas passam a ser permanentes e a contratualização com o privado uma regra, que potencia esta hegemonia. Para concluir, enfatiza a necessidade de reformular o SNS e de ter em consideração a própria natureza mutável da saúde. Exemplifica com os surtos de hepatite A, de Legionella ou de SARS-COV-2, que podem surgir a qualquer instante e implicam uma sobrecarga inimaginável dos cuidados médicos, sendo um sistema baseado no setor privado incapaz de dar resposta quando está em causa a saúde pública. Este livro de leitura obrigatória faz uma caricatura mordaz dos bastidores do SNS e dos grandes grupos de saúde em Portugal. Critica o pensamento político de endeusamento do privado e da demonização do público, e apela a uma mudança urgente de filosofia para encarar os desafios sociais e demográficos que se avizinham. Autoria: Ana Margarida Alho Edição: Joana Silva Revisão: Filipa Gomes "(…) falar sobre saúde privada é falar também, e incontornavelmente, sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS)"
"Os grandes grupos económicos que dominam o sector da saúde são alimentados pelas falhas do sistema público (…)" A obra As Leis do Contágio – Como surgem e desaparecem os fenómenos virais, transcende o previsível contágio por vírus causadores de doenças infeciosas, abordando temas como o sistema financeiro, a propagação da obesidade e da violência, as notícias falsas e os vírus informáticos. São várias as incursões históricas que o autor vai introduzindo: destaca-se a descoberta de que a malária é transmitida por mosquitos e o desenvolvimento dos primeiros modelos matemáticos para controlo da propagação desta doença, no final do século XIX, que valeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina em 1902 a Ronald Ross, médico cirurgião britânico. A sua teoria demonstrou como examinar a dinâmica das epidemias, através de uma abordagem mecanicista, que tinha em consideração o modo de transmissão da doença, as medidas de controlo que poderiam ser implementadas e a suscetibilidade da população a essa infeção, sendo utilizada para prever como cada um destes fatores poderia influenciar o número de casos. Apesar de, tipicamente, associarmos o contágio às chamadas “doenças transmissíveis”, estudos recentes têm demonstrado existir disseminação de outras doenças e comportamentos humanos, tais como o bocejo, a felicidade, o divórcio, a solidão e a obesidade. Costumam ser dadas três razões para explicar porque partilhamos várias caraterísticas com as pessoas que nos são mais próximas. Uma é que tal se pode dever ao ambiente; outra é que nos relacionamos com pessoas que, à partida, já são semelhantes a nós: este comportamento denomina-se homofilia. A terceira hipótese é a do contágio social, ou seja, somos influenciados por quem nos rodeia. O contágio social é um tipo de contágio complexo, em que são necessárias várias exposições a diferentes pessoas com determinado comportamento para que a transmissão ocorra, ao contrário do que costuma acontecer com as doenças infeciosas. Também nas redes sociais se pode assistir ao desenvolvimento de “surtos” de informação ou de desinformação, que estão dependentes de vários fatores. Pode aliar-se o conceito de influenciador ao de superdisseminação: sabe-se que, para doenças como o VIH e a malária, 20% dos casos são responsáveis por cerca de 80% da transmissão. Ainda assim, são proporcionalmente poucos os conteúdos que se tornam virais na internet, e é difícil prever se tal vai acontecer. Fazendo um paralelo entre a propagação de uma infeção e de uma notícia falsa, esta última parece propagar-se numa área muito maior e de forma muito mais célere do que as notícias verdadeiras, não porque existam mais oportunidades de propagação, mas porque a probabilidade de transmissão em cada uma dessas oportunidades é superior, possivelmente devido ao fator novidade. Ao contrário do que possamos pensar, a vasta maioria dos artigos de notícias falsas não são publicados em websites de origem duvidosa, mas sim por fontes de confiança. O que acontece é que manipuladores online utilizam bots de redes sociais, muitas vezes dirigidos a alvos específicos, para difundir tweets falsos. O objetivo é chegar a jornalistas ou a políticos, que irão funcionar como ampliadores dessa história falsa, fazendo com que esta ganhe credibilidade, chegando a uma vasta audiência. Para isto também contribui o efeito de feedback da imprensa: quando uma notícia é divulgada por um meio de comunicação social, vários outros se lhe seguem. Deste modo, as redes sociais permitem aumentar a eficiência da transmissão. Segundo um estudo que pretendia efetuar uma comparação da prevalência de conteúdo de baixa credibilidade relacionado com a pandemia de COVID-19, entre as plataformas Twitter e Facebook, as contas automatizadas não parecem ter um grande papel na disseminação de conteúdo duvidoso, sendo as fontes oficiais as principais responsáveis pela infodemia, havendo inclusive uma coordenação entre diferentes contas, em ambas as plataformas. Como se pode, então, travar a propagação de uma notícia falsa? Tal como na transmissão de uma doença infeciosa, vários fatores estão implicados, e o encurtamento do tempo de reação desde a origem do surto é fundamental. Tal como a imunização ativa tem sido utilizada no combate à pandemia de COVID-19, também a imunização psicológica pode ser utilizada como uma arma na luta contra a infodemia. “Um dos maiores desafios da Saúde Pública é convencer as pessoas”, tal como é citado no livro, e a comunicação é uma das competências essenciais do médico de Saúde Pública, constituindo uma ferramenta fundamental no combate à desinformação. Autoria Filipa Gomes Edição Joana Silva “Tackling harmful content will have a direct effect – preventing a person from seeing it – as well as an indirect effect, preventing them spreading it to others.” 30/6/2022 0 Comments FACTFULNESS Factfulness não é apenas um livro, mas sim uma ferramenta de apoio na tomada de decisão, podendo ser utilizada tanto no setor da saúde, como no setor económico e empresarial.
Após anos de experiência em locais diversos do planeta, Hans mostra-se perplexo perante o facto de todos nós termos uma perceção enviesada do Mundo – achamos que o Mundo está pior do que aquilo que ele, realmente, está. Para o autor, devemos ter uma visão real do Mundo para nele podermos navegar. Ataques terroristas, alterações climáticas, guerras, doenças, perda de biodiversidade. Todos os dias nos deparamos com notícias chocantes de eventos trágicos. Raramente são noticiados os avanços lentos e estáveis da Humanidade, o que molda a forma como entendemos essa mesma realidade. Ao longo do livro, Hans Rosling apresenta-nos 10 instintos que nos levam a ter uma visão global dramática do Mundo, sugerindo-nos, em contrapartida, métodos práticos para os ultrapassarmos:
Factfulness é, na realidade, um livro de saúde pública dirigido à população geral. É intemporal pela abordagem proposta relativamente ao posicionamento perante problemas. Esta metodologia poderá ser adaptada a diversos contextos de saúde, tanto a nível global, nacional, local, comunitário ou individual, auxiliando na sua priorização. A leitura deste livro na era COVID-19 assume especial interesse. Crises globais envolvem a necessidade de uma vigilância apertada e uma agregação de dados em tempo real para uma permanente interpretação da realidade. A priorização assume, nos dias de hoje, uma importância redobrada. Torna-se mais evidente a necessidade de medir eventos, de alocar e mobilizar adequadamente recursos. Contudo, a Saúde Pública global não pode ficar presa à pandemia, havendo necessidade permanente de reavaliação e realinhamento. Reconhecer os instintos que nos podem turvar a visão da realidade é o primeiro passo. Factfulness deverá ser visto como uma ferramenta no processo de priorização e decisão, que assume especial relevo para o exercício da Saúde Pública num Mundo em permanente evolução. Autoria Joana Roque Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes ![]() The International Bank for Reconstruction and Development World Bank Oxford University Press, 1993 348 pp., Paperback EUR 6,68€ ISBN: 0-19-620890-0 Available here The World Development Report (WDR) is a report presented by the World Bank. The World Bank is an international financial institution that provides loans to governments of developing countries, and that started focusing early on people’s basic needs and global public health. This edition of the WDR addresses the relation between health and economy and the issues around how investing in health in developing countries should be done. Starting with an analysis of the global health situation, the WDR recognizes that although there are substantial improvements in health in the last decades, there are still considerable public health problems that constitute a heavy burden for households, slowing the overall economic development. It considers that the magnitude of these problems is due to internal issues in health systems. First, there is an excessive use of public funds for tertiary rather than primary services. Second, there is an iniquity in distribution of resources - the poorest have a higher burden of disease and worse access to health services. Third, the inefficiency of health services is high and is due to the lack of adequate information systems, lack of planning capacity and inefficient use of overall resources. Fourth, there has been an increase in health costs in recent years, partly due to the increase in professionals and technological innovation and lack of regulation of the health market. The Report's authors argue that governments should play a central role in the regulation of the health market as health is a common good and the private sector cannot be expected to produce this good. Since the main issue with health in developing countries lies with the availability of a bigger budget, the WDR stresses the usefulness of a cost-effectiveness analysis in planning health services, suggesting several strategies. First, public spending and economic policies should prioritize the poorest and favour equity. Also, health expenditures should be concentrated on cost-effective interventions, redirected from specialized care to primary and preventive services (such as immunization programs, HIV prevention and pre-natal and maternal care), improving efficiency. Non-cost-effective interventions must be reduced (for example, cardiac surgery, premature advanced care or AIDS medication) in order to liberate investment for cost-effective interventions. Governments should increase the training of health professionals, particularly midwives and nurses, as well as postgraduate training in public health, planning and administration – since less cost-effective interventions should be reduced, there’s no need for an investment in too many specialists. Three other measures could be taken: decentralization, reinforcement of information systems and research. Despite the controversy, linked to short-term negative impact of these programs, the WDR argues for a long-term positive impact on public health, as long as no cuts are made to essential social services. For this, the WDR argues that external aid should be better coordinated and that recipient governments should be better able to make choices for the use of aid funds. The Report tackles issues still relevant to the health sector all around the globe, but more prominent in developing countries. It was also an innovative report: it popularized the use of DALY as a methodology to assess the cost-effectiveness of health interventions, and it already tackled the problem of a global crisis of antibiotic resistance. However, at the same time, it was controversial on many points. First, it encouraged the use of the private sector as a provider of services, despite the evidence that such methods decrease the uptake of services. Second, it creates a climate where high levels of lending are deemed to be good. Third, it raises some concerns on the capability of developing countries adapting and adopting these approaches and on how indigenous populations are disregarded in some analysis. Fourth and biggest controversy is on the lack of evidence for some of the health policies that are suggested, since it was written before systematic reviews. But despite the criticism that may be made on the 1993 WDR, it doesn’t take away the importance of this document and its role in tackling the idea that investing in health should be, overall, planned and cost-effective. Autoria Teresa Garcia Edição Joana Silva Referências bibliográficas 1. Abbasi K. The World Bank on world health: under fire. BMJ. 1999;318(7189):1003-1006. 2. Mawdsley E., Rigg J. The World Development Report II: continuity and change in development orthodoxies. Sage Journals. 2003 Out;3(4):271-286 ![]() Caroline Criado Perez London, Vintage Publishing, 2020 432 pp., Paperback £9.99 / EUR 12.99 ISBN: 978-17847-0628-9 Na última década, têm sido descritas na literatura iniquidades em saúde relacionadas com o género. (1-4) Há muitas doenças que afetam as mulheres de modo desproporcional relativamente aos homens, sendo que a maioria dos estudos se foca em grupos mistos, sem desagregar os dados por género. A existência de dados desagregados por género poderia fornecer pistas sobre os determinantes de saúde relacionados com essas doenças, de modo a poder orientar a ação através do desenho de intervenções adaptadas à realidade. (1) Alguns estudos de Sociologia revelam diferenças na saúde das mulheres, atribuíveis aos diferentes contextos socioculturais, apoio social e estilos de vida, para além de diferenças estruturais e organizacionais da sociedade. (2) Tal afeta as mulheres em todos os níveis, constituindo um problema sistémico que leva, inevitavelmente, a outcomes mais desfavoráveis em saúde. Esta é uma das principais questões que este livro foca. Ao longo do livro, é patente que a ausência de dados desagregados por género contribui, em grande parte, para este problema, servindo para acentuar as iniquidades atribuídas ao género, ao longo dos tempos. A estas iniquidades estão, inevitavelmente, associadas consequências diretas e indiretas, desde as mais ligeiras às que contribuem para a mortalidade, culminando na perpetuação dos estigmas e papéis da mulher na sociedade, alimentando este ciclo vicioso. Invisible Women apresenta uma primeira exposição: os dados da espécie humana focam-se essencialmente no género masculino. Uma série de assunções tidas como verdadeiras sobre o homem é generalizada para a espécie, enaltecendo os papéis sociais do homem em detrimento dos da mulher, que fica relegada para segundo plano. Com efeito, existem poucos dados sobre a mulher e o seu papel ao longo dos tempos, o que acaba por prejudicar as mulheres, quer no papel que assumem na sociedade, quer nas políticas que as afetam, trazendo, inexoravelmente, malefícios para a sua saúde. O livro está dividido em seis partes. Na primeira parte, o livro aborda questões gerais relacionadas com a vivência em sociedade, incluindo transportes e espaços públicos. Um aspeto que se destaca é a localização e ausência de iluminação das paragens dos variados meios de transporte, assim como nas vias públicas, fatores que afetam as mulheres e que aumentam o medo de serem abordadas e violadas sexualmente à noite. Relativamente aos transportes, uma questão abordada nesta parte refere-se às rotas criadas nestes meios, que muitas vezes são pensadas de acordo com as necessidades dos homens trabalhadores e que não têm em conta as rotas e desvios necessários para os diferentes serviços relacionados com supermercados e escolas. Uma outra questão levantada prende-se com as casas de banho nos variados estabelecimentos. Estas estão construídas igualmente entre os dois sexos mas não equitativamente, uma vez que as mulheres, geralmente, demoram mais nas mesmas devido à diferença no aparelho urinário, o que gera filas de espera para o seu uso, maior incómodo para as mulheres e, possivelmente, consequências a nível de infeções urinárias e, a longo prazo, de incontinência urinária. Para além disso, é exemplificado um aspeto relativo aos países nórdicos que afeta mais a saúde das mulheres. Nas estações mais frias, quando há neve, é necessário proceder à sua limpeza, de modo a evitar acidentes rodoviários. A sua limpeza limita-se frequentemente às estradas em si, descurando as bermas e os passeios. Ora, verificou-se que a maioria dos acidentes nesta época ocorrem por escorregamento não na faixa rodoviária, mas nos passeios, sendo as mulheres as mais afetadas. Uma mudança na política de limpeza para abranger os passeios levou a uma diminuição drástica de acidentes, com especial impacto nas mulheres, demonstrando a importância de analisar os dados existentes. Na segunda parte, a autora relata questões relacionadas com o trabalho e rendimento, com base nos dados existentes. Aborda não só a disparidade em termos de rendimento (gender pay gap), mas também o recrutamento e o trabalho não remunerado realizado pelo género feminino, como o trabalho doméstico e de cuidadora informal. Para além disso, destaca o facto destas questões não permitirem a evolução na carreira (quando esta existe), muitas vezes favorecendo o homem caucasiano em detrimento da mulher. Isto leva a que as mulheres cheguem ao final da vida com um menor rendimento e, consequentemente, uma menor reforma, o que poderá afetar a capacidade de pagamento de medicação numa idade mais avançada, afetando a sua saúde. Por outro lado, nas áreas de trabalho predominantemente femininas, o enfoque na mulher perde-se: faltam dados para compreender as consequências dos efeitos a nível ocupacional, incluindo a exposição a compostos tóxicos e violência no trabalho. Em particular, destaca-se a exposição em salões de manicure a disruptores endócrinos, como o bisfenol-A (ou BPA), que, por se assemelhar ao estrogénio, pode influenciar o aparecimento de malformações durante a gravidez e de doenças endócrinas, como a diabetes mellitus. (5). O problema prende-se, porém, com a falta de dados relativamente ao impacto destes componentes nas mulheres que, devido às suas especificidades fisiológicas, irão tolerar diferentes níveis de exposição e terão efeitos diferentes dos geralmente enunciados para o ser humano. A parte três realça o design dos produtos que utilizamos no quotidiano, e como isto influencia as mulheres negativamente. Em primeiro lugar, refere a produção de materiais adaptado ao homem, e não à mulher. Exemplifica este problema através da produção de telemóveis iPhone® e de pianos, ambos produzidos para o tamanho das mãos do homem, numa perspetiva de “um só tamanho”, descurando as características e estatura do género feminino. Na mesma lógica, expõe ainda a problemática do tamanho dos assentos do carro, que apresentam uma distância superior para os pedais nas mulheres, o que leva a que se aproximem mais do volante, aumentando a probabilidade de lesões e morte em caso de acidentes rodoviários. Portanto, torna-se importante construir e desenhar de raiz todos os produtos e bens tendo em atenção as características da mulher, principalmente numa perspetiva de equidade, de modo a evitar consequências negativas na saúde e na vida das mulheres. Na parte quatro, são focadas as especificidades do corpo da mulher. Nem mesmo a medicina o conhece tão bem para o tratar devidamente. Esta desconsideração da parte da classe médica custou a saúde de muitas mulheres ao longo do tempo, devido a diagnósticos não efetuados na apresentação inicial da doença – como casos de dor pélvica crónica, diagnosticada inicialmente como associada à menstruação, mas que na realidade se trataria de endometriose, com impacto elevado na qualidade de vida da mulher. (6) Nas partes cinco e seis, a autora debruça-se sobre os aspetos económicos, relacionados com o trabalho não pago realizado pelas mulheres e não contabilizado no produto interno bruto de um país. Destaca ainda que estes são agravados por aspetos contextuais de pandemias e desastres naturais. Refere, por fim, a importância das mulheres na liderança, de forma a ecoar os problemas e necessidades das mulheres e implementar medidas e políticas que tenham em consideração a discrepância relativamente aos homens. Ao destacar as disparidades associadas ao género, a autora dá luz aos vários problemas que afetam a mulher no seu dia-a-dia e que, direta ou indiretamente, poderão influenciar a saúde da mulher e o aumento da carga de doença. O livro foi publicado há dois anos, porém, o tópico apresentado mantém-se relevante, principalmente devido à inércia existente em todos os setores, seja na recolha, na análise ou na integração de informação relativa às mulheres. Pouco foi feito neste período de tempo para corrigir os problemas apresentados ao longo do livro, apesar de todos os argumentos referidos. Dada a extrema relevância do tópico abordado na obra, recomenda-se a sua leitura a toda a população, mas principalmente legisladores, políticos, gestores, profissionais de saúde, investigadores, arquitetos e designers. Uma crítica geralmente levantada à autora está relacionada com a referenciação de trabalhos de dissertação, apresentações em conferências e relatórios internos, porém este livro acaba por apresentar uma visão mais global ao incorporar não só o que é publicado, mas também o que permanece por publicar, o que poderá contribuir para diminuir o “viés de publicação”, reconhecido na investigação epidemiológica. Dada a diferença entre géneros nas diversas áreas evidenciadas nesta obra, é clara a necessidade de considerar o género como um conceito dinâmico, contendo vários níveis, e que interfere nos papéis sociais. (7) A obtenção de dados desagregados permitirá criar novas políticas e moldar as já existentes, numa sociedade que ainda muito tem para evoluir. Autoria José Chen Edição Filipa Gomes Referências bibliográficas 1. Clayton JA, Davis AF. Sex/gender disparities and women's eye health. Curr Eye Res. 2015;40(2):102-9. 2. Ostrowska A. Health inequalities--gender perspective. Przegl Lek. 2012;69(2):61-6. 3. Palencia L, De Moortel D, Artazcoz L, Salvador-Piedrafita M, Puig-Barrachina V, Hagqvist E, et al. Gender Policies and Gender Inequalities in Health in Europe: Results of the SOPHIE Project. Int J Health Serv. 2017;47(1):61-82. 4. Salk RH, Hyde JS, Abramson LY. Gender differences in depression in representative national samples: Meta-analyses of diagnoses and symptoms. Psychol Bull. 2017;143(8):783-822. 5. Ribeiro E, Ladeira C, Viegas S. EDCs Mixtures: A Stealthy Hazard for Human Health? Toxics. 2017;5(1). 6. Bontempo AC, Mikesell L. Patient perceptions of misdiagnosis of endometriosis: results from an online national survey. Diagnosis (Berl). 2020;7(2):97-106. 7. Mollborn S, Lawrence EM, Hummer RA. A gender framework for understanding health lifestyles. Soc Sci Med. 2020;265:113182. 17/12/2021 0 Comments Ser mortal![]() Atul Gawande / Lua de Papel New York, Picador USA, 2014 272 p., Paperback EUR 16.50 ISBN: 9789892330198 Ser mortal é um livro escrito por um cirurgião, escritor e investigador na área de Saúde Pública – Atul Gawande – que trata algumas das questões mais importantes na compreensão do ser humano e do seu ciclo de vida.
Enquanto médico-escritor, Gawande descreve de forma detalhada, científica e precisa, alguns episódios da sua prática clínica e experiência de vida, tocando em pontos filosóficos e éticos da experiência humana, “assoprando”, escreve João Lobo Antunes, “à vida real nas matérias da mais sisuda gravidade”. Posto isto, o principal tema do livro é um assunto difícil de conceber: a mortalidade da condição humana. O peso que carregamos como condenação inevitável da passagem do tempo é um dos temas mais sisudos e graves com os quais, impreterivelmente, teremos que lidar. A fragilidade associada ao envelhecimento, à doença grave e ao aproximar da morte são as principais questões tratadas nesta obra, sendo estas muitas vezes ignoradas não só pela população em geral, mas também pelos médicos e restantes profissionais de saúde. Apesar do contacto quase diário com estes dilemas, estes profissionais, muitas vezes, encaram-nos de forma leviana. No entanto, talvez esta desvalorização do problema possa ser interpretada como um mecanismo de “coping”, motivado pela constante exposição às temáticas referidas. Gawande faz um apelo para uma reflexão sobre a mudança de filosofia associada aos cuidados de saúde, necessária para que nos possamos tornar capazes de lidar com esta fase do ciclo de vida. A procura incessante pelo tratamento e sobrevivência faz com que a abordagem do pessoal médico não tenha como foco principal a melhoria do bem-estar dos doentes, dos seus familiares diretos e cuidadores. Com esta inversão de prioridades da qualidade para a quantidade, os cuidados prestados são, frequentemente, inadequados às verdadeiras necessidades e desejos dos nossos doentes. A abordagem deste tema, que tem tanto de natural como de delicado, é feita, pelo autor, de uma forma direta, mas com muito tato. Através de vários exemplos, este demonstra como uma abordagem refletida leva a um maior nível de satisfação e sensação de paz tanto por parte dos indivíduos (a envelhecer ou em fase terminal), como pela sua família e amigos. A falta de uma comunicação clara sobre os verdadeiros desejos dos idosos ou doentes terminais desencadeia angústia nos familiares, que se sentem incapazes de tomar decisões. Assim, devido à falta de discussão destes problemas entre o seio familiar e a equipa responsável pelos cuidados, os doentes acabam por sofrer intervenções desnecessárias e que em pouco ou nada contribuem para a melhoria da sua qualidade de vida e independência. Muitas vezes, o oposto do desejado acontece, e apenas se prolonga o sofrimento que, invariavelmente, culmina na morte. Na primeira parte do livro, o autor foca-se no envelhecimento, abordando diferentes modelos de cuidados, tais como habitações multigeracionais e lares com assistência nas tarefas domésticas e cuidados de saúde. Nestes, os seus residentes mantêm a sua independência, sendo que cada modelo apresenta os respetivos prós e contras para o idoso e para a sua família. Nesta obra, há uma descrição exata de como o envelhecimento altera o nosso corpo e a sua funcionalidade, que nos toma de surpresa e que nos invoca uma sensação de impotência. Esta sensação está, irrevogavelmente, ligada à nossa independência, mesmo depois de perdermos algumas das nossas capacidades. A dignificação do envelhecimento deve ter como foco primário o ponto de vista do idoso e não do cuidador ou do pessoal médico. Este ponto de vista é-nos transmitido, de forma brilhante, pelo autor do livro, que entrevistou vários idosos, dando-lhes a oportunidade de se expressarem sobre como gostariam que os cuidados lhes fossem prestados. Embora os lares de idosos sejam extremamente seguros, o autor apresenta como contra-argumento que esta segurança apenas serve para salvaguardar os interesses dos prestadores de cuidados e dos familiares dos utentes, porque uma vida com a máxima segurança não é o tipo de vida a que maioria das pessoas aspira. Depois desta observação, o autor tenta encontrar modelos que procurem trazer significado, independência e autonomia à vida dos residentes em lar, mesmo dos mais frágeis, dando exemplos de projetos nos quais se optou pela introdução de animais de estimação ou crianças no seu convívio regular. Apesar disto, poucas soluções são apresentadas para pessoas com demência ou com limitações da capacidade cognitiva. Ainda nesta secção, é brevemente abordada a possibilidade de oferecer cuidados a doentes terminais através do internamento domiciliário, onde estes podem viver os seus dias finais no seu próprio lar, rodeados por entes queridos e com o maior conforto possível. Neste contexto, o autor apresenta vários exemplos de como a aceitação e compreensão da morte iminente poderão acrescentar qualidade aos nossos últimos dias. Na segunda parte do livro, o autor refuta o paradigma médico do tratamento a todo o custo, independentemente daquilo que faz mais sentido para os doentes, cujas prioridades, muitas vezes, “ultrapassam o simples prolongar da sua vida”. Baseando-se em artigos de estudos de caso, Gawande dá exemplos de exceções em relação à esperança média de vida de um doente terminal. O autor faz ainda algumas comparações quanto à proporção de mortes que ocorre no próprio lar vs. em contexto de cuidados de saúde, extrapolando resultados que, dificilmente, têm validade interna e externa. Na parte final do livro, o autor discute a problemática da eutanásia e a forma como o “suicídio assistido” praticado nos Países Baixos é uma forma de derrota do sistema de saúde, que deveria melhorar a qualidade do final de vida e não tentar encurtar o sofrimento através da morte. No livro, segue-se a discussão sobre o facto de não serem oferecidas alternativas à eutanásia, que poderia deixar de ser uma opção, caso o sistema de saúde oferecesse cuidados paliativos adequados às necessidades da população. Através de uma analogia com a história do seu pai, Gawande faz um paralelo sobre a decisão partilhada das questões sobre o final de vida, onde dirige aos médicos um desafio: o de ajudar os doentes a interpretar o que será melhor para eles, tendo por base as suas prioridades, ao invés das abordagens paternalistas ou informativas que são utilizadas com frequência. O livro Ser mortal oferece uma perspetiva detalhada do declínio das funções humanas, sem, no entanto, apresentar soluções perfeitas para lidarmos com o mesmo. Ainda assim, este livro surge como uma lufada de ar fresco num problema tão difícil de lidar e sobre o qual o nosso entendimento é limitado. Assim, o que este livro nos proporciona é a possibilidade de discussão dum tema tão atual quanto intemporal, de uma forma simples e concreta. A devolução de poder ao idoso ou paciente terminal propõe uma abordagem pragmática deste assunto grave e incontornável, tanto a cuidadores como a médicos. Esta é uma leitura obrigatória para todos aqueles que querem dar o melhor final de vida possível aos seus doentes ou familiares. Autoria Joana Maia Edição Filipa Gomes 5/11/2021 0 Comments Data feminism![]() Autoras: Catherine D’Ignazio and Lauren F. Klein Editado por David Weinberger Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2020 Série: <Strong> ideas series 327 p., Hardcover EUR 25.25/USD 29.95 ISBN: 9780262044004 “Os Dados são o novo Petróleo” – esta é uma frase amplamente utilizada, muitas vezes por políticos ou empresários, normalmente homens privilegiados e, não raras vezes, pessoas sem conhecimentos ou competências em Ciência de Dados. Todavia, a utilização desta frase ilustra o potencial na extração e conversão de dados para lucro ou benefícios do próprio, de empresas ou de instituições. As autoras do livro Data Feminism (1), no entanto, utilizam esta frase para lançar a discussão sobre a utilização de dados, a digitalização e a inovação tecnológica como novas formas de criar hierarquias de poder e opressão estruturada, enfrentadas há séculos por mulheres, imigrantes, pessoas de cor, comunidades indígenas e membros da comunidade LGBTQ+. Assim, o objetivo principal do livro é, não só explorar e examinar as estruturas de poder desiguais no domínio dos dados, com uma perspetiva intersecional e uma lente feminista, como destacar as tentativas feitas para retificar as desigualdades e as opressões, na área da Ciência de Dados. O ponto de partida para Data Feminism é algo que quase nunca é reconhecido na área de Ciência de Dados – o poder não é distribuído igualmente no Mundo. Aqueles que detêm o poder são desproporcionalmente da elite, heterossexuais, brancos, saudáveis, cisgéneros, do Hemisfério Norte. O trabalho de Data Feminism pretende, em primeiro lugar, perceber como as práticas existentes na Ciência de Dados servem para reforçar as desigualdades existentes e, em segundo lugar, utilizar a área de Ciência de Dados para desafiar e mudar a distribuição de poder. Data Feminism é uma convicção e um compromisso para a ação – a ideia que sistemas opressivos de poder nos prejudicam a todos, que debilitam a qualidade e a validade do nosso trabalho e que nos impedem de criar impacto social verdadeiro e duradouro, com recurso à Ciência de Dados. Se dados são poder, quem beneficia com eles? Quem deixamos para trás? Como são usados os dados para manter as estruturas de poder? Ao longo de sete capítulos, são explorados sete princípios que evidenciam as forças desiguais de poder, com recurso a dados, dando exemplos históricos e factuais, que ilustram limites na utilização de dados e procuram responder a estas questões e providenciar (algumas) soluções ou esforços realizados nesta temática. Um dos principais argumentos do livro coloca em oposição os conceitos de “justiça de dados” e o de “ética de dados”. As autoras defendem que a “ética de dados”, ao focar-se na justiça e nos preconceitos, cria estruturas que protegem o poder. Para exemplificar o seu ponto de vista, apresentam dois ótimos exemplos, de fácil compreensão. O primeiro, é a utilização desmedida de Inteligência Artificial (IA) em processos de recrutamento “justos”, em que a IA obtém informação de um conjunto de dados pré-existentes (onde existe sobrerrepresentação de homens, brancos, privilegiados). Este facto prejudica as oportunidades de mulheres e minorias na análise curricular automatizada por IA. O segundo exemplo descreve softwares de policiamento em que as comunidades marginalizadas estão sobrerrepresentadas, levando a situações em que os algoritmos de IA vão prever nestes bairros e, junto destas comunidades, uma maior ameaça e risco, dando origem a um fenómeno designado como pernicious feedback loop, que consiste na amplificação dos efeitos do preconceito racial e da criminalização da pobreza, pois as predições do futuro assemelham-se às práticas racistas do passado. As autoras argumentam, de forma convincente, que as empresas e as instituições precisam mais do que meros “consertos” tecnológicos para lidar com dados para a equidade e a justiça. Estas tecnologias são, ainda hoje, desenhadas e produzidas por uma sociedade significativamente influenciada por uma história de supremacia branca e pela opressão do patriarcado. As autoras argumentam que “uma sociedade racista dará uma ciência racista”. Por outro lado, a “justiça de dados” reconhece desigualdades históricas e diferenciais de poder, o que, pode culminar no desafio das dinâmicas existentes. Para ilustrar este conceito, as autoras contam o episódio, quase anedótico, da Dra. Christine Darden, uma das mulheres que serviu de inspiração para o livro e filme Elementos Secretos. Darden, matemática em Langley (agência espacial americana NASA), percebeu desde cedo na sua carreira que, embora tivesse as mesmas qualificações e fizesse o mesmo trabalho, os seus colegas homens eram mais rapidamente promovidos. Darden recorreu à área de “Iguais Oportunidades” de Langley, onde uma colega lhe forneceu dados públicos e gráficos que mais que evidenciavam um problema sistémico na NASA. Ao levar estes mesmos dados ao seu Diretor, este mostrou-se “chocado com a disparidade” – mas os dados existiam e eram públicos, simplesmente antes de Darden ninguém os tinha analisado ou, mais importante que isso, ninguém os tinha utilizado de forma a reconhecer as desigualdades e alterar as dinâmicas. A Dra. Christine Darden tornou-se a primeira mulher afro-americana a ocupar uma posição Sénior em Langley e era Diretora quando se aposentou da NASA em 2007, trilhando o caminho para muitas outras que lhe seguiram os passos. Apesar destes exemplos, as autoras destacam ainda outra problemática – a ausência de dados (e o impacto que isso tem) sobre membros de comunidades marginalizadas. Esta ausência não pode servir como prova insuficiente para justificar e validar as suas reivindicações de opressão. Para tal, destacam a falta de dados disponíveis nos Estados Unidos da América (EUA) sobre a mortalidade materna, especialmente em mães negras. Tal facto, leva a uma situação de desvalorização das (assustadoras) taxas de mortalidade materna em mulheres negras e, como fator agravante, uma descredibilização dos medos e receios destas mulheres. Serena Williams, provavelmente a tenista mais famosa da atualidade, trouxe este assunto para as luzes da ribalta ao partilhar a sua experiência traumatizante e foi a voz necessária para que muitas mulheres negras percebessem que não estavam sozinhas. Atualmente, as estimativas sugerem que a mortalidade materna de mulheres negras pode ser mais de três vezes superior à de mulheres brancas, e a falta de validação da sua dor contribuiu, muitas vezes, para tirar a vida dessas mulheres. Ao longo de todo o livro, as autoras incorporam princípios da Teoria Interseccional. Esta teoria procura examinar como diferentes categorias biológicas, sociais e culturais, tais como género, raça, classe, capacidade, orientação sexual, religião, idade e outros eixos de identidade interagem em níveis múltiplos e, muitas vezes, simultâneos. Este quadro pode ser usado para entender como a injustiça e a desigualdade social sistémica ocorrem numa base multidimensional. (2) A interseccionalidade sustenta que os conceitos clássicos de opressão dentro da sociedade — tais como o racismo, o sexismo, o classismo, o capacitismo, a xenofobia, a bifobia, a homofobia, a transfobia e intolerâncias baseadas em crenças — não agem independentemente uns dos outros, mas que essas formas de opressão se inter-relacionam, criando um sistema de múltiplas formas de discriminação. (3) Deste modo, as autoras fazem questão de incluir referências bibliográficas sobre e escrita por membros da comunidade LGBTQ+, pessoas de cor, nações anteriormente colonizadas e comunidades indígenas. As autoras vão ativamente além dos trabalhos académicos, pois este tem sido um espaço que frequentemente negligencia as contribuições de grupos marginalizados. Quase dois terços das suas citações são de mulheres ou pessoas não binárias; quase todos os capítulos têm um projeto do Hemisfério Sul; um terço de todas as citações são de pessoas de cor; e quase metade de todos os projetos mencionados no livro são liderados por pessoas de cor. Alguns dos exemplos de projetos preponderantes incluem uma iniciativa liderada por María Salguero para registar casos de feminicídio no México (assassinatos de mulheres e meninas com base no género) de maneira aberta e acessível. A falta de dados publicados pelo Governo, levou Salguero a vasculhar artigos de jornais e alertas do Google, encontrando todas as ocorrências que podia e registando-as num mapa. Outro exemplo é o projeto “Gender Shades”, em que a equipa liderada por Joy Buolamwini e Timnit Gebru descobriu que as mulheres negras têm 40 vezes mais probabilidade de serem classificadas incorretamente pela tecnologia de reconhecimento facial do que os homens brancos. Esta pesquisa rapidamente estimulou a IBM a lançar seu projeto “Diversity in Faces”, que visa construir uma tecnologia de reconhecimento facial que seja racialmente justa e precisa. No entanto, a IBM abandonou recentemente este projeto, após discussões mais alargadas sobre o uso antiético deste software no perfil racial e vigilância em massa. Quanto a ideias de reforma, em Data Feminism há algo que ressalta: o processo de formulação de políticas é inerentemente confuso, mas a melhor maneira de o tornar mais equitativo é garantir a participação o mais ampla possível, tanto na formulação do problema, como na implementação de soluções. As autoras declaram os seus próprios preconceitos e privilégios logo no início do livro, sendo francas sobre as suas limitações e deficiências. Incluem até os seus valores e métricas, para que possa haver responsabilização e prestação de contas – algo muito frequentemente esquecido em publicações académicas. Este livro destina-se a feministas, mulheres ou homens, que procuram aprender sobre o feminismo na era digital e como o seu próprio ativismo pode contribuir para a criação de uma forma mais justa e equitativa de Ciência de Dados. Data Feminism vai muito além de um trabalho académico que compila pesquisas, literatura ou histórias – serve como uma chamada à ação. Como Médica Interna de Saúde Pública, reconheço a importância da análise de dados e informação em saúde, bem como da utilização de ferramentas informáticas de apoio ao planeamento, vigilância, intervenção e investigação em saúde, duas das competências essenciais ao exercício do Médico Especialista em Saúde Pública (4) e reconheço o impacto que as novas tecnologias e a Saúde Digital vão trazer aos Médicos de Saúde Pública em particular, e a toda a sociedade no geral. Todavia, não existe nenhuma quantidade de dados - de consertos tecnológicos a ajustes algorítmicos - que nos dê aquilo que procuramos – uma sociedade mais justa e equitativa. As formas sistémicas de opressão não podem ser eliminadas ou corrigidas por coleção de dados suficientes. Os dados que recolhemos e analisamos, foram e ainda são, representativos da nossa sociedade desigual, moldada por formas racistas, sexistas e imperialistas. Mais dados e novos livros não mudam as sociedades nem desmantelam os sistemas de opressão – este poder está nas pessoas. Apesar deste livro não dar as respostas, incentiva a ação e lança a semente para a mudança de pensamentos e paradigmas. Assim, recomendo-o a todos os que, utilizando dados, façam a escolha diária de fazer parte da solução. Autoria Patrícia Pita Ferreira Edição Filipa Gomes Referências bibliográficas 1. D’Ignazio C, Klein LF. Data Feminism. Strong ideas series ed. Weinberger D, editor. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press; 2020. 2. Crenshaw K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. In The University of Chicago Legal Forum; 1989; Chicago. p. 139-167. 3. Knudsen SV. Intersectionality – a theoretical inspiration in the analysis of minority cultures and identities in textbooks. In Caught in the Web or Lost in the Textbook, 8th IARTEM conference on learning and educational media; 2006; Utrecht, The Netherlands. p. 61-76. 4. Colégio de Saúde Pública. Competências Essenciais ao Exercício do Médico Especialista em Saúde Pública, Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos ; 2013. |
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