12/9/2023 0 Comments Uma História da Saúde Pública“Ao longo da história humana, os maiores problemas de saúde que os homens enfrentaram sempre estiveram relacionados com a natureza da vida em comunidade.” “Uma História de Saúde Pública”, de George Rosen, é o livro de referência na área da educação em Saúde Pública americana. Este foi escrito no final da década de 1950 e descreve todos os grandes acontecimentos que contribuíram para o desenvolvimento da saúde pública. Trata-se de uma viagem no tempo, descrevendo acontecimentos desde a antiguidade clássica até ao século XX e dando especial ênfase ao desenvolvimento da medicina no Ocidente.
Rosen inicia esta obra com algumas observações sobre as civilizações antigas, salientando as preocupações básicas da higiene, sustentadas por evidências arqueológicas. O naturalismo da medicina hipocrática é amplamente considerado como o primeiro passo em direção ao empirismo, mas a apreciação de Rosen é substantiva: a observação sistemática das condições agroclimáticas permitiu aos médicos gregos discernir entre doenças endémicas e epidémicas, identificar padrões de incidência sazonal e estabelecer correlações entre lagos, ou pântanos, e malária. A evolução do conhecimento influenciou decisivamente as estratégias utilizadas na agricultura (um exemplo foi o estabelecimento da hipótese do contágio entre animais). Roma beneficiou do conhecimento grego, mas fomentou a inovação com a criação de locais especializados dedicados aos aquedutos, esgotos e banhos públicos nos principais centros urbanos. Com a crescente reorganização das cidades e a implementação de restrições de abastecimento, transformaram os médicos de itinerantes em profissionais fixos em cada cidade. Com a queda do império Romano, os mosteiros tornaram-se as únicas organizações que desenvolviam soluções para os problemas de saúde comunitários. A partir do século XIII, os municípios passaram a assumir as funções da saúde pública, restringindo a criação urbana de gado, regulamentando os mercados alimentares e pavimentando e limpando as ruas. A peste trouxe outra mudança importante – o estabelecimento da quarentena. Rapidamente emergiu a ideia de urgência na assistência em caso de doença ou infortúnio, tanto no Oriente, islâmico, quanto no Ocidente, cristão. Falando em religiões, é de realçar que motivos religiosos e sociais foram muito importantes na criação de Hospitais. No Oriente, em 805, o primeiro hospital geral tinha sido construído em Bagdá, durante o reinado do califa Harun al-Rashid. Ao longo do século, construiu-se um total de 34 hospitais, refletindo o elevado nível da medicina em terras muçulmanas. No Ocidente, os hospitais surgiram ligados à igreja, nas ordens monásticas. Os mosteiros possuíam um infirmitorium – lugar de tratamento – uma farmácia e uma horta de plantas medicinais. Apenas a partir do século XIII o hospital medieval começou a sair das mãos dos religiosos para pertencer aos municípios, porém sem a completa substituição do clero. Monges e freiras, cujo salário era pago pelo município, continuaram a cuidar dos doentes. Os estados mercantilistas rapidamente conceberam a saúde da população como riqueza nacional e começaram a contabilizar a mesma através da recolha de estatísticas de vida. A evolução da saúde populacional beneficiou de outros dois grandes marcos: a mudança no abastecimento de água urbana das fontes públicas para a distribuição privada no interior e a adoção da inoculação – a precursora da vacinação. O livro culmina na análise do movimento sanitário que percorreu a Europa e os EUA em meados do século XIX – explicando as bases dos modernos sistemas de saúde pública e a sua ligação ao capitalismo. Explora a exigência de uma reforma sanitária profunda – no abastecimento de água, saneamento, habitação e legislação fabril. Aborda a migração do meio rural para o urbano, impulsionada pela industrialização, que sobrecarregou os sistemas de saúde pública tradicionais, levando a uma deterioração acentuada da saúde urbana. As famílias burguesas fugiram dos centros das cidades, apenas para perceber que o tifo e a cólera corriam ainda mais rapidamente. Os dois últimos capítulos são dedicados ao fim do século XIX, à “era bacteriológica” e às suas consequências, incluindo a descoberta de micróbios e vetores, a pasteurização e a melhoria significativa da saúde pública. Deixa ainda reflexões sobre a saúde infantil, nutrição, educação em saúde, saúde ocupacional, seguros e a necessidade de cooperação internacional - temas cuja crítica permanece atual. Autoria Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso
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“Obviously, being in good health is avoiding dying,” he understood, “but it’s also being able to move around well, being able to see and hear, being able to think clearly, and not being in pain, not suffering from anxiety, and not being depressed. It’s common sense. These things really matter to how you live your life. But if you just focus on death, you miss them.” Enquanto médico de Saúde Pública, considero que a função mais distinta e nobre que posso desempenhar é a do planeamento em saúde. Apesar da sua complexidade e interdisciplinaridade, desde a biomedicina à psicologia comportamental, esta competência visa sobretudo capacitar mudanças em saúde. Para aqueles menos familiarizados, as fases do processo de planeamento incluem o diagnóstico da situação, a definição de prioridades e objetivos, a elaboração de uma estratégia e de um plano de intervenção; a sua execução e subsequentes monitorizações e avaliações. No entanto, nem sempre todas as etapas são implementadas, ainda menos vezes pela ordem correta, e mais raramente com o cumprimento das regras e tarefas subjacentes. Como uma introdução à Saúde Pública, nada mais correto será do que versar sobre a primeira fase – mais concretamente, sobre a problemática e problemas de um diagnóstico de saúde à escala nacional, internacional e global. Neste comentário, faz-se uma reflexão dirigida sobre a evolução do paradigma de planeamento em Saúde Global, mais concretamente, tendo em conta o livro “Epic Measures: One Doctor, Seven Billion Patients”, centrado na história de Chris Murray, fundador do Institute for Health Metrics and Evaluation e do projeto Global Burden of Disease. Até finais do século XX, o conhecimento da saúde e da doença a nível global era confiante e errado. Confiante, devido à autoridade e certeza afirmada pelas instituições que o mediavam, descreviam e iam reportando. Errado, pela incoerência interna e externa dos seus resultados. No entanto, era fácil identificar contrastes gritantes, conforme mostram os seguintes exemplos. Em 1980, numa altura em que a mortalidade infantil era um dos principais desafios de Saúde Global, a sua contabilização mundial poderia variar entre menos de 20 milhões e mais de 30 milhões, dependendo da fonte – Organização Mundial de Saúde (OMS) e Nações Unidas, respetivamente, representado uma diferença de 50%. Estes contrastes viriam noutros indicadores, como na esperança média de vida. No Paquistão, em apenas um ano, registar-se-ia um aumento desta de 51,8 para 59,1 anos, equivalente ao esperado para uma década de progresso. Já na Gâmbia, o mesmo indicador, em dois anos, sofreria uma redução de 43 para 33,5 anos – uma diminuição catastrófica. Quanto às diferenças observadas, vários eram os motivos teóricos destas incongruências: métodos de medição distintos, diferentes formas de gerar evidência, processamentos alternativos de dados, casos duplicados, codificações heterogéneas, entre muitos outros. Na prática, diferentes organismos políticos, com diferentes regras, duplicavam os seus esforços, dividindo-se nas suas conclusões e perdendo-se no seu foco. Além disso, os dados fornecidos pelos países poderiam estar incorretos. Quando estas organizações internacionais usavam fontes primárias de dados, atribuíam-se-lhes total credibilidade e validade, fazendo lembrar uma falácia de petição de princípio com o silogismo disposto. Primeira premissa: Os dados de saúde fornecidos por um país são corretos. Segunda premissa: Uma dada nação é a única autoridade para considerar os dados do seu país como corretos ou incorretos. Logo, todos os dados fornecidos por uma certa nação são os corretos, porque foi a própria nação a dá-los. No entanto, existem vários motivos para querer melhorar (ou até piorar) certos indicadores. Independentemente do medidor e do reportado, a verdade era que, no final do século XX, se continuava a morrer sem se saber quanto, nem porquê. Das duas mil milhões de mortes ocorridas desde 1970, só cerca de um quarto constava num registo de sistema vital acessível. Mesmo em 2010, ano em que aproximadamente 53 milhões de pessoas morreram, em 147 dos 192 países das Nações Unidas, não existiam certificados de óbito fidedignos, sendo que muitas vezes nem existiam quaisquer registos. Mesmo em países “mais ricos”, os registos clínicos ainda apresentam muitos dados omissos. “‘There was a lot more data collected on the fact of death rather than the cause of death, which requires a medical doctor to certify what the child died from, and medical doctors were in short supply,’ Lopez says.” Como não se sabia do que se morria, não se dirigiam esforços para o combate proporcional das doenças. Assim, aquando da identificação da tuberculose como a principal causa de morte por doenças infeciosas nos adultos, a maioria dos programas de saúde global focava-se apenas em doenças infantis. A ausência de um correto diagnóstico de situação levaria a uma desadequada definição de prioridades e alocação de recursos. Por conseguinte, nesta altura, como as principais causas de morte em adultos eram diferentes das que mais afetavam as crianças, seria necessário desenvolver novas estratégias e programas para lidar com pessoas e problemas diferentes. No entanto, não bastaria criar dois grupos distintos de projetos de intervenção em saúde, divididos por faixas etárias – era preciso criar um contínuo de estratégias e planos que tivessem impacto ao longo da vida: uma criança que precisa de hidratação oral para a diarreia, se curada, pode mais tarde contrair infeção por VIH. Conforme viria a ser reiterado, esta falha de planeamento resultaria numa inefetividade útil em Saúde Global. Num relatório publicado em 1990 no Simpósio Nobel em Estocolmo, descreviam-se as disparidades sobre a distribuição da doença e morte, e do financiamento de investigação da saúde. Estimava-se que 93% da carga de mortalidade prevenível verificava-se nos países em desenvolvimento. No entanto, dos 30 mil milhões de dólares investidos na investigação em saúde em 1986, apenas cerca de 5% foram dedicados a problemas específicos destes países. Estes contrastes criavam implicações infelizes: “Treating the most common cases cost less than $250 per death averted. Put in terms of cost per year of life saved, the tab wasn’t even $10.” Dado o inadequado e variável retrato do status quo, tornou-se imperativo definir novas regras para perceber e responder aos desafios reais do mundo. Se até então a mortalidade era vista como uma realidade de duas dimensões (idade do óbito e causa), tornou-se incontornável encontrar novas formas de caracterizá-la. Assim, Chris Murray, figura central do livro, introduziu o conceito de “years of life lost” (anos de vida perdidos), como forma de contabilizar a mortalidade precoce, bem como os “disability adjusted life years” (DALYs), que consideram a duração e magnitude da doença durante a vida. Para acompanhar as suas ideias inovadoras, era necessária uma introdução considerável e fundamentada do seu racional e da sua pertinência. Assim, estas ideais vieram a ser incorporados no World Development Report de 1993, financiado pelo Banco Mundial, cuja edição era dedicada ao investimento na saúde. Como o objetivo maior deste produto seria definir necessidades e prioridades para melhorar políticas de saúde, as doenças da International Classification of Diseases foram categorizadas em três grandes grupos, incluindo um total de 100 doenças e lesões responsáveis por quase todas as mortes e por mais de 90% da carga de doenças global atribuída à incapacidade. “In Group I were what almost everyone thought of when they considered the concerns of poor countries: communicable diseases contracted by contagion or infection and health problems related to being born or giving birth. In Group II were commonly considered “rich country” problems: noncommunicable diseases such as cancers, addictions, heart disease, and depression. In Group III were injuries, intentional and unintentional—poisoning, drowning, road accidents, suicide, and other grisly events—which, at the time, virtually no one studied on a global basis.” Assim, só no início dos anos 90, assistimos aos primeiros esforços de compilação e catalogação de dados mundiais sobre a mortalidade, as suas limitações, o reconhecimento do foco dos grandes programas de saúde em apenas algumas das áreas mais impactantes e a definição de novos indicadores e métodos de análise. Com a produção do World Health Report do ano de 2000 da OMS, Murray conseguiu cativar a atenção mundial. Na página 200 deste documento, algo novo e avassalador foi apresentado: uma classificação ordenada do desempenho geral dos sistemas de saúde de cada país, ajustando a esperança média de vida ajustada à incapacidade provocada pela doença. Figura 1. Classificação ordenada do desempenho geral dos sistemas de saúde de cada país em 1997. (DALE = disability-adjusted life expectancy). Retirado de: https://cdn.who.int/media/docs/default-source/health-financing/whr-2000.pdf Tão chocantes foram os resultados (que convido seriamente a todos a leitura) que Murray e a sua equipa de “Evidência e Informação para Políticas” da OMS foram acusados de sabotagem política. Os rankings apresentados contrastavam com as expectativas e auto-imagem dos delegados nacionais, incluindo inúmeros Ministros da Saúde, apesar de poucas objeções substanciais terem sido apresentadas. Ou estariam eles a fazer um mau trabalho na gestão da Saúde nos seus países, ou a “evidência” teria de estar errada. Na mudança de Diretor-Geral de 2006, reformas na direção da OMS levaram à redução da equipa de 22 elementos para apenas dois, sem Murray. Neste seguimento, este iniciou os trabalhos que levariam à criação do Institute for Health Metrics and Evaluation e ao projeto Global Burden of Disease (GBD), responsável pelo estudo da mortalidade e doença em diferentes países, momentos, e características demográficas. O GBD viria a quantificar as perdas em saúde provocadas por centenas de doenças, lesões e fatores de risco, para melhoria dos sistemas de saúde. Nos esforços de Saúde Global da OMS que se seguiram, abandonou-se a quantificação e comparação universal de indicadores objetivos por apreciações seletivas e enviesadas. A indexação parametrizada para os principais problemas de saúde deu lugar aos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (dirigidos inicialmente apenas a países em desenvolvimento) e, mais tarde, aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (abrangente de todos os países). Apesar de parecerem inocuamente semelhantes, e até mais compreensivos, estas novas propostas apresentam limitações incontornáveis. Figura 2. Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (em cima) e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (em baixo). Através de: https://www.researchgate.net/publication/335299485 Nos ODS, os objetivos individuais não estão hierarquizados tendo em conta o grupo de problemas de saúde ao qual pertencem – por exemplo, o alcoolismo não está integrado no grupo das doenças não transmissíveis, sendo um indicador independente. Para além disso, todos os indicadores recebem o mesmo peso no cálculo da média aritmética que constitui o valor atribuído a cada objetivo, e que se repete para calcular índice sumário para comparação entre países – dando a mesma importância ao suicídio, ao tabagismo e à obesidade. Assim sendo, o resultado desta alteração de sistema conduziu a um aumento da relevância de tópicos com menor impacto na saúde (como o caso dos envenenamentos) e a diminuição, remoção e aglomeração de indicadores importantíssimos (integrando doença mental, cardiovascular e músculo-esquelética num tópico único). Figura 3. Desempenho do índice dos ODS relacionados com a saúde, do índice dos ODM e do índice não relacionado com os ODM, bem como de 33 indicadores individuais relacionados com a saúde, por país (2015). Os países estão classificados pelo seu índice ODS relacionado com a saúde, do mais elevado para o mais baixo. Os indicadores foram escalados de 0 a 100. SDG=Sustainable Development Goal. MDG=Millennium Development Goal. MMR=maternal mortality ratio. SBA=skilled birth attendance. Mort=mortality. NN mort=neonatal mortality. NTDs=neglected tropical diseases. NCDs=non-communicable diseases. FP need met, mod=family planning need met, modern contraception. Adol=adolescent. UHC=universal health coverage. Air poll mort=mortality attributable to air pollution. WaSH=water, sanitation, and hygiene. IPV=intimate partner violence. HH air poll=household air pollution. Occ risk burden=burden attributable to occupational risks. PM2.5=fine particulate matter smaller than 2.5 μm. Adaptado e modificado de: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(16)31467-2. Para todo o caso, inúmero Programas Nacionais de Saúde, desde o Português até ao Luxemburguês, sofrem do mesmo pecado original, por nascerem das referências da OMS, com pouco foco em questões tão determinantes como os fatores de risco modificáveis (responsáveis por cerca de 48% da carga de doença), em detrimento de atenção sobrelevada para vigilância epidemiológica de doenças transmissíveis e afunilamento da avaliação da saúde pela mortalidade e não pela qualidade de vida.
Conclusão… No nosso paradigma de saúde, enfrentamos desafios inauditos. Inauditos, não por serem novos, mas por até há bem pouco tempo não existir forma de medir o seu impacto e de o comunicar de forma clara. Foi feito um progresso enorme ao nível da recolha e análise de dados que permitiu o desenvolvimento do nosso conhecimento atual sobre as causas de mortes e o seu impacto. No entanto, é incontornável a importância de medir a saúde de forma transparente e rigorosa. São esses os métodos que permitiram perceber que a população mundial continua a crescer, que está a envelhecer e que acumula cada vez mais doenças crónicas. São essas as abordagens que permitiram identificar a incapacidade em saúde como uma parcela crescente dos custos galopantes e insustentáveis da saúde. Certamente terão algo a dizer sobre a forma de resolver os desafios contemporâneos que enfrentamos. Para tal, e feito este diagnóstico de situação, é necessário definir prioridades relevantes e pertinentes para o investimento dos recursos e desenho de intervenções efetivas em saúde. Assim sendo, com esta análise crítica, foi me possível compreender que, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são referências insuficientes e desadequadas para orientar políticas e intervenções em saúde. Primeiro, porque não respeitam os próprios princípios de priorização de problemas decorrentes de diagnósticos de situação válidos. Segundo, porque são ultrapassados no sue racional e rigor por uma alternativa superior, em constante aprimoramento e resultados validados – o Global Burden of Diseases. Por último, é urgente mudar a forma como se pensa em saúde – ou melhor, na doença – ou ainda melhor, na morte. Os sistemas de Saúde inspirados nos ODS não seguem evidência atualizada, estão sujeitos a pressão política e falham no reconhecimento das prioridades com maior impacto para as populações, pobres e ricas. Há que dar importância à medição do que está realmente a acontecer para permitir que o que fazemos vá ao encontro das necessidades de quem servimos. Só depois, se poderá começar a fazer Saúde Pública. Autoria José Miguel Diniz Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso 19/7/2023 0 Comments Retalhos da Vida de Um Médico“Eles haviam-me confortado sem olhar aos meus préstimos. (…) Tinha recebido mais uma lição de humanidade.” Este livro conduz o leitor a uma viagem através de histórias contadas, de forma “retalhada”, das vivências de um médico em Portugal, em meados do século XX. A maior parte destes “retalhos” abordam a realidade do meio rural português da época, nomeadamente as condições de vida das populações do interior de Portugal Continental. O autor transmite a ideia de inspiração autobiográfica, apesar de ser difícil definir com exatidão a fronteira entre a realidade e a ficção.
A cronologia não é ortodoxa. Os retalhos têm uma relativa independência entre si e podem ser lidos isoladamente. Existe uma mistura de géneros literários. É possível identificar características associadas às autobiografias, aos contos, bem como aos diários e às memórias. Traços comuns são as dificuldades que o médico encontra na relação com as terras e as populações que o acolhem. Depara-se com um Portugal pobre, analfabeto e isolado. É chamado a partilhar o dia-a-dia com gentes que vivem em condições precárias de habitação, trabalho e de acesso a cuidados de saúde. Constata que a iliteracia e a falta de recursos deixam as pessoas à mercê de superstições, charlatães e pseudociências. Através dos relatos do livro, confirmamos a forma como a pobreza socioeconómica, os baixos níveis de escolaridade, a escassez de intervenções de saúde pública (ex.: vacinação) impactam a saúde das populações. É quase inevitável, para um leitor do século XXI, dar consigo a fazer comparações com a realidade de hoje e notar as conquistas que foram conseguidas na área da saúde. Nesta obra, encontram-se várias lições de humanidade e substrato para reflexões sobre o significado da experiência humana. A fronteira ténue entre a vida e a morte. A complexidade das relações interpessoais, com os seus encontros e desencontros. As subtilezas e os duplos sentidos da comunicação e da linguagem. O impacto do racismo, da xenofobia, da misoginia. Em última análise, a confrontação do Homem com a falta de empatia e compaixão do seu próximo. O autor foca-se na experiência humana e na relação médico-doente, com alguns pormenores técnicos das ciências médicas, utilizando uma linguagem que permite ao leitor comum compreender o enredo e acompanhar a viagem. Autoria Fábio Simões Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso "Deep medicine combines empathy with AI's immense capacity for data-driven insights, to get the best of both human and artificial intelligence worlds." "Deep Medicine: How Artificial Intelligence Can Make Healthcare Human Again" é um livro escrito por Eric Topol, um cardiologista e cientista de renome, que explora o potencial da inteligência artificial (IA) na área da saúde.
O livro destaca a crescente influência da IA e das tecnologias digitais na medicina moderna. Topol argumenta que a medicina está a passar por uma transformação radical, impulsionada pela capacidade da IA em analisar grandes quantidades de dados de saúde de forma rápida e precisa. Essa capacidade pode vir a ajudar os médicos a fazer diagnósticos mais precisos, personalizar os tratamentos e melhorar os resultados dos doentes. Topol discute como a IA pode ser aplicada em várias áreas da medicina, como o diagnóstico médico, a genómica, a imagiologia e medicina de precisão. O autor apresenta-nos o exemplo de como os algoritmos de machine learning podem ser treinados para reconhecer padrões e identificar doenças com uma precisão impressionante, superando, muitas vezes, médicos (humanos) experientes. Além disso, destaca como a IA pode ajudar os médicos a tomar decisões mais informadas, fornecendo dados relevantes e mais atualizados para melhor orientar o diagnóstico e tratamento dos doentes. Topol enfatiza, no entanto, a importância do equilíbrio entre a utilização da IA e a necessidade de manter a prática médica um ato humano. Embora a IA possa realizar tarefas complexas de forma eficiente, a empatia e o cuidado humano ainda são essenciais na relação médico-doente. O autor realça a importância de aproveitar as habilidades únicas dos médicos, como o pensamento crítico, a intuição e a capacidade de comunicação, para complementar o uso da IA na medicina. "Deep Medicine" aborda, ainda, as questões éticas e a preocupação com a privacidade relacionadas com a adoção da IA na saúde. Topol discute a necessidade de garantir a transparência dos algoritmos de IA, proteger a privacidade dos dados dos doentes e lidar com questões de viés de algorítmico. Resumidamente, "Deep Medicine", de Eric Topol, oferece uma visão abrangente sobre o potencial da inteligência artificial na Medicina e enfatiza a necessidade de integrar a tecnologia de forma ética e humana, com vista a uma prática médica mais eficiente e, acima de tudo, centrada no doente. Autoria Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso CITAÇÃO “Human reproduction is neither the problem, nor the solution. When we put gender equality and rights at the heart of our population policies, we are stronger, more resilient, and better able to deal with the challenges resulting from rapidly changing populations.” “Chasing fertility targets and trying to influence women’s reproductive decision-making will only end in failure. History has shown that such policies are rarely effective and undermine women’s rights. Investing in people and their potential is the surest path to prosperity and peace.” “Women’s bodies should not be held captive to population targets.” REVIEW O relatório State of World Population é a principal publicação anual da UNFPA, desde 1978. Aborda questões emergentes no campo da saúde e direitos sexuais e reprodutivos, explorando potenciais desafios e oportunidades para o desenvolvimento global. A edição deste ano, intitulada 8 Billion Lives, Infinite Possibilities - The case for rights and choices, inclui contribuições de dois parceiros da ONU: a International Organization for Migration e a Population Division of the Department of Economic and Social Affairs. Nesta edição, foram reunidas as perspetivas de especialistas independentes com o objetivo de explorar a perceção do público, de políticos, de investigadores, entre outros, relativamente às tendências populacionais atuais, e de que forma essa perceção se reflete em comportamentos que podem influenciar a saúde e os direitos de género, sexuais e reprodutivos.
Salientamos aqui os principais pontos-chave do relatório deste ano: De acordo com dados de 68 países: 24% das mulheres são incapazes de dizer não ao sexo e 11% são incapazes de tomar decisões específicas sobre contraceção. Cerca de 257 milhões de mulheres em todo o mundo não tem acesso a contraceção segura e confiável. Uma investigação realizada em oito países revelou que pessoas que foram expostas a qualquer informação sobre a população mundial, através da comunicação social ou de conversas informais, tinham a opinião de que a contagem da população mundial se encontra muito elevada. A demografia global está a mudar rapidamente: 2/3 das pessoas vivem em contextos de baixa fertilidade, enquanto 8 países são responsáveis por metade do crescimento projetado da população mundial até 2050 (República Democrática do Congo, Egito, Etiópia, Índia, Nigéria, Paquistão, as Filipinas e a República Unida da Tanzânia), reorganizando drasticamente a anterior classificação mundial dos países mais populosos. Atribuir à fertilidade a causa para as alterações climáticas não levará à responsabilização dos países mais emissores de carbono. De 8 mil milhões de pessoas, cerca de 5,5 mil milhões não ganham dinheiro suficiente - cerca de 9€/ dia - para contribuir significativamente para as emissões de carbono. Segundo um estudo recente da ONU, uma maior igualdade de género no trabalho poderia ajudar a equilibrar a economia em sociedades mais envelhecidas e com baixa fertilidade, ao invés do estabelecimento de metas e estratégias para que as mulheres tenham mais filhos. Dados recentes indicam que a ansiedade relacionada com o excesso populacional tem levado os governos a adotar políticas destinadas a aumentar, diminuir ou manter as taxas de fertilidade – que se têm revelado ineficazes e violam os direitos das mulheres. Muitos países iniciaram programas de promoção de 'famílias maiores', através da oferta de incentivos financeiros às famílias. No entanto, continuam a apresentar taxas de natalidade abaixo dos dois filhos por mulher. Os esforços para retardar o crescimento populacional através da esterilização forçada ou contraceção coercitiva violam grosseiramente os direitos humanos. O planeamento familiar não deve ser usado como uma ferramenta para atingir as metas de fertilidade – mas sim como uma ferramenta de capacitação do indivíduo. As mulheres devem poder escolher quando engravidar e quantos filhos ter, livres de constrangimentos ou da pressão de especialistas ou autoridades. Por fim, o relatório recomenda fortemente ao governos que estes instituam políticas de igualdade de género, incluindo melhoria dos programas de licença parental, benefícios fiscais para quem tem filhos, políticas que promovam a igualdade de género no trabalho e o acesso universal à saúde, assegurando direitos de género, sexuais e reprodutivos. Propõe ainda uma fórmula que, aplicada, levará a ganhos económicos, e permitirá criar sociedades mais resilientes e capazes de prosperar, independentemente das novas tendências e mudanças populacionais que possam surgir a nível global no futuro. Autoria Teresa Carvalho Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso 7/12/2022 0 Comments COISAS DE LOUCOS Quando a jornalista Catarina Gomes escreveu a reportagem sobre os últimos doentes vivos internados no Hospital Miguel Bombarda, acompanhou 24 homens e mulheres herdeiros de um tempo em que o confinamento surgia como a primeira resposta da medicina e da sociedade à doença mental. Estas pessoas viviam no hospital há uma média de 40 anos e tinham duas coisas em comum: todos haviam sido diagnosticados com uma patologia do foro psiquiátrico e todos tinham a férrea vontade de ali permanecer. O impacto desta experiência foi tal que Catarina quis conhecer também as histórias dos doentes mortos. Regressou aos arquivos do hospital e encontrou, no sótão do edifício, uma caixa empoeirada que ficara esquecida. Ao abri-la, deparou-se com dezenas de objetos que haviam pertencido, décadas antes, a indivíduos que por ali tinham passado ou vivido. Nascia assim o Coisas de Loucos. Coisas de Loucos começa por fazer uma breve revisão histórica. As melhores estimativas apontam para que cerca de 66 mil indivíduos terão passado pela instituição em toda a sua história. Miguel Bombarda (1851-1910) foi diretor do Hospital de Rilhafoles (como anteriormente era designado o Hospital Miguel Bombarda) de 1892 até à sua morte, apostando na melhoria das condições de assistência e tratamento dos doentes sob os preceitos da psiquiatria alemã, com abordagens inovadoras e imprimindo dinamismo à especialidade através de um vasto corpo profissional e académico. Contextualizada a sua origem, o manuscrito é de seguida fundamentalmente uma coletânea de pequenas histórias. Através de uma narrativa semi-histórica, Catarina Gomes relata os eventos das vidas dos seus donos através dos seus objetos, ora recorrendo aos registos hospitalares, ora contextualizando com acontecimentos históricos, ora preenchendo as lacunas com questões e suposições pessoais que embelezam a história sem a caricaturar. Inicialmente, a autora procurara os doentes antigos mais célebres, descritos como mais perigosos ou como mais loucos. Entre estes “ilustres”, surgiam nomes como o de José Júlio Costa, o homem que assassinara o presidente Sidónio Pais, Ângelo de Lima, poeta da geração de Fernando Pessoa, Valentim de Barros, bailarino homossexual internado pela sua orientação sexual, e, claro, Aparício Rebelo dos Santos, o homem que matara o Doutor Bombarda. Contudo, estes perderam relevância aquando da descoberta da caixa. Os objetos encontrados eram itens que qualquer um poderia trazer consigo: o molho de chaves, a caneta, os óculos, a carteira, os papéis rabiscados, o documento de identificação. O fascínio pela banalidade na doença mental tornava-se uma espécie de voyeurismo intelectual, uma vontade de compreender a loucura como se fosse possível contorná-la, como um buraco na estrada. Antes de serem forçados ao confinamento, os internados do Hospital Miguel Bombarda tiveram família, amores, ocupação, planos para o futuro. Pela mestria das palavras de Catarina Gomes, estes indivíduos são momentaneamente resgatados do esquecimento e do anonimato. O fio condutor ao longo das páginas é a lente aplicada a estas histórias exumadas, uma perspetiva sistematicamente humanizadora em que a autora nos traça os contornos destas pessoas, as suas qualidades e defeitos, os seus valores, crenças e pensamentos, numa estrutura biográfica que evoca empatia. Sem nunca perder o pendor literário, a autora consegue que, quer o tema, de uma forma global, quer cada uma das histórias relatadas, o sejam de uma forma imensamente digna e respeitadora, sem menorizar sofrimentos mas também sem os romantizar. São histórias que invocam a compreensão do outro, a desmistificação do doente mental como um ser humano complexo e imperfeito. A própria autora expressa que “à procura do excecional na loucura, encontra-se o absolutamente corriqueiro. A maior parte dos que sofrem de doença mental não são artistas nem criminosos, nem geniais, nem perigosos. São como nós. Somos nós”. Quer de um ponto de vista discriminatório, quer de um ponto de vista de saúde pública, é inegável a efetividade de uma abordagem mais holística que considere as circunstâncias e motivações específicas do indivíduo e ofereça uma variedade de opções de tratamento e suporte. Este é um livro que cruza psiquiatria e saúde mental, direitos humanos e ética, valores sociais e culturais de um país que, como muitos outros durante muito tempo, encarou a doença mental como algo inevitavelmente condenado à vergonha, à ocultação e ao exílio entre quatro paredes. Fazendo uso de uma estrutura linear e de uma linguagem clara e simples, por vezes até popular, do leitor espera-se que mantenha a abertura de pensamento e a disponibilidade para rever os seus próprios conceitos de doença mental. Autoria José Durão Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes “À procura do excecional na loucura, encontra-se o absolutamente corriqueiro. A maior parte dos que sofrem de doença mental não são artistas nem criminosos, nem geniais, nem perigosos. São como nós. Somos nós."
A economia comportamental é uma área que estuda a influência de fatores psicológicos, emocionais, cognitivos e sociais na tomada de decisão. Por outras palavras, esta disciplina esclarece como são feitas as escolhas das pessoas, com base em experiências pessoais, hábitos e regras simplificadas. Este é o tema central do livro Nudge, onde o autor desenvolve este conceito através de casos práticos, em questões relacionadas com a saúde, a riqueza e a felicidade. Nudge pode ser visto como o empurrão que nos ajuda a tomar as melhores decisões, em detrimento de outras. Estes pequenos fatores estão presentes em várias situações diárias das nossas vidas, desde a colocação estratégica de doces nas caixas de supermercado até às tentativas de upselling nos restaurantes. Porém, muitas vezes, esses estímulos persuasivos podem levar as pessoas a tomar decisões que não são as melhores para si. Um dos termos abordados na primeira parte do livro é a chamada arquitetura da escolha, conceito criado pelos próprios autores, onde nos são demonstradas as várias maneiras pelas quais as escolhas podem ser apresentadas aos indivíduos e o impacto que esta apresentação pode ter na tomada de decisão. Os autores defendem que o Estado pode intervir nas decisões da sua população, em prol da sua melhor decisão, mas mantendo sempre a liberdade de escolha, posição também já defendida por outros autores (1). A definição dos dois sistemas do pensamento humano está também bem descrita na parte inicial do livro, anteriormente definida num livro intitulado Thinking, Fast and Slow. Os sistemas definidos são o sistema automático e o sistema refletivo. Pela influência destes dois sistemas, o autor enumera uma série de vieses que influenciam a escolha dos cidadãos. Na parte relativa ao dinheiro e às poupanças, o autor começa por abordar soluções que poderão ajudar as pessoas a gerir as suas poupanças e refere, também, os mercados de crédito e o investimento ingénuo e as suas ligações com a arquitetura da escolha. Já na terceira parte, é abordado o tópico da saúde, onde o autor faz uma revisão do plano de prescrição de medicamentos do governo de George W. Bush e retrata também como será possível aplicar o conceito de nudge na proteção ambiental e planetária. Na quarta parte, o autor dá enfoque à arquitetura das escolhas que deve ser implementada nas escolas, de forma a que os alunos consigam tomar as melhores decisões possíveis e aperfeiçoar o seu percurso académico. Este tópico é, sem dúvida, atual e encontra-se bastante patente em várias áreas como a economia, a medicina, a saúde pública, a política, entre outras. Este livro informa sobre uma forma adicional de analisar o comportamento, o pensamento e a psicologia nos humanos e retirar conclusões para a melhor tomada de decisão. A sua integração com a Saúde Pública é facilmente depreendida, no sentido em que a economia comportamental poderá fornecer uma perspetiva empírica de como os indivíduos tomam decisões e, desta forma, atingir impactos significativos nos seus comportamentos (2). São já muitas as iniciativas governamentais colocadas em prática que incorporam conceitos de economia comportamental para melhorar a saúde, a tomada de decisão e a eficiência governamental na elaboração de políticas de saúde (3). Bibliografia
Autoria Joana Carvalho Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes “The first misconception is that it is possible to avoid influencing people’s choices.” “Just as no building lacks an architecture, so no choice lacks a context.” “Doctors are crucial choice architects, and with an understanding of how Humans think, they could do far more to improve people’s health and thus to lengthen their lives.” Neste livro, escrito por Bruno Maia, médico especialista em Neurologia e Medicina Intensiva e ativista político, social e cultural, é abordada a tensão e conflito entre a prestação pública e a oferta privada de serviços de saúde, bem como o posicionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) perante os desafios que se avizinham. Símbolo de progresso e de oportunidade de melhoria social, o SNS tem contribuído para contornar a desigualdade social e a miséria sanitária, combatendo iniquidades. Citando António Arnaut, “o SNS não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de política social, constituindo a maior reforma social do século XX português”. Contudo, o autor coloca o dedo na ferida, ao afirmar que a sua atual organização e funcionamento são escolhas políticas. Reflete sobre a crise a que temos vindo a assistir: a desvalorização do sector público, que contrasta drasticamente com o crescimento do sector privado, um modelo mais eficiente e robusto, altamente competitivo (e não complementar) de prestação de cuidados. Ao longo do livro são discutidos os três modelos de sistemas de saúde: liberal (vigente nos EUA, baseado na prestação privada de cuidados, em que o estado assegura apenas os serviços mínimos), o estatizante (criado na URSS, baseado no financiamento público da totalidade dos cuidados, sem lugar à iniciativa privada) e o misto (como o do SNS, em que o Estado assegura a cobertura a toda a população, admitindo coexistência de iniciativa privada, como as convenções). Advoga que o problema central dos sistemas de saúde privados não são os custos per si nem o mau desempenho, mas sim a falta de acesso equitativo dos cidadãos. Corrobora esta afirmação com exemplos da Kaiser Family Foundation de 2019, que estimou que um em cada cinco norte-americanos estaria em risco de insolvência familiar por dívidas com cuidados de saúde. Argumenta ainda as diversas consequências do sistema liberal: como no privado, a saúde não é encarada com um direito social, mas como um bem de consumo, devendo ser lucrativa e baseada num pensamento de venda de serviços e não de necessidades. Mais à frente, reforça a problemática da suborçamentação crónica do SNS que tem conduzido à acumulação de dívida e à intrincada gestão de buracos orçamentais. Esta limitação é agravada pelo atual contexto epidemiológico de envelhecimento populacional, com uma crescente prevalência de doenças crónicas, traduzida num gasto superior de medicação, exames de diagnóstico e consultas. O autor critica ferozmente esta suborçamentação como uma escolha política: tendo em conta o aumento do PIB, refere ser difícil de aceitar que a suborçamentação do SNS seja uma fatalidade ou um imperativo económico, enumerando as suas consequências e a acumulação de ineficiências. Refere que Portugal gasta menos em saúde por habitante do que a média dos países da OCDE, sendo este acréscimo de custos suportado pelas famílias. Ao longo do livro, argumenta que a promoção do pluriemprego tem sido uma escolha política, registando-se cada vez menos exclusividade no SNS e mais vínculos permanentes ao sector privado. Retrata o círculo vicioso em que vivemos: se os médicos reduzem o horário no SNS para prestação no privado, o SNS fará menos exames, consultas e cirurgias, aumentando as listas de espera. Consequentemente, para o SNS assegurar o tempo de espera legalmente definido, terá de recorrer a convenções no privado, serviços estes realizados frequentemente por esses mesmos médicos que trabalhavam no setor público e que agora estão no privado. Bruno Maia resume que quanto menor for o investimento no SNS, menor será a remuneração e valorização no setor público, impulsionando mais profissionais a recorrer ao pluriemprego, transitando doentes e procedimentos para o privado, cujo pagamento acaba na mesma por ser assegurado pelo Estado. Outro dos pontos abordados é o oligopólio partilhado pelos interesses corporativos do privado, alimentado promiscuamente pelas falhas sucessivas do SNS. O autor faz uma historiografia das Parcerias Público Privadas (PPP) e dos conturbados processos associados. Enfatiza que entre 2010 e 2016, o financiamento público dos privados através de regimes de convenções, aumentou de 190 para 405 milhões de euros, referindo que por cada dez euros de orçamento da saúde, quatro euros terminam no privado. Acresce a suborçamentação do SNS, em que as falhas passam a ser permanentes e a contratualização com o privado uma regra, que potencia esta hegemonia. Para concluir, enfatiza a necessidade de reformular o SNS e de ter em consideração a própria natureza mutável da saúde. Exemplifica com os surtos de hepatite A, de Legionella ou de SARS-COV-2, que podem surgir a qualquer instante e implicam uma sobrecarga inimaginável dos cuidados médicos, sendo um sistema baseado no setor privado incapaz de dar resposta quando está em causa a saúde pública. Este livro de leitura obrigatória faz uma caricatura mordaz dos bastidores do SNS e dos grandes grupos de saúde em Portugal. Critica o pensamento político de endeusamento do privado e da demonização do público, e apela a uma mudança urgente de filosofia para encarar os desafios sociais e demográficos que se avizinham. Autoria: Ana Margarida Alho Edição: Joana Silva Revisão: Filipa Gomes "(…) falar sobre saúde privada é falar também, e incontornavelmente, sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS)"
"Os grandes grupos económicos que dominam o sector da saúde são alimentados pelas falhas do sistema público (…)" A obra As Leis do Contágio – Como surgem e desaparecem os fenómenos virais, transcende o previsível contágio por vírus causadores de doenças infeciosas, abordando temas como o sistema financeiro, a propagação da obesidade e da violência, as notícias falsas e os vírus informáticos. São várias as incursões históricas que o autor vai introduzindo: destaca-se a descoberta de que a malária é transmitida por mosquitos e o desenvolvimento dos primeiros modelos matemáticos para controlo da propagação desta doença, no final do século XIX, que valeu o Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina em 1902 a Ronald Ross, médico cirurgião britânico. A sua teoria demonstrou como examinar a dinâmica das epidemias, através de uma abordagem mecanicista, que tinha em consideração o modo de transmissão da doença, as medidas de controlo que poderiam ser implementadas e a suscetibilidade da população a essa infeção, sendo utilizada para prever como cada um destes fatores poderia influenciar o número de casos. Apesar de, tipicamente, associarmos o contágio às chamadas “doenças transmissíveis”, estudos recentes têm demonstrado existir disseminação de outras doenças e comportamentos humanos, tais como o bocejo, a felicidade, o divórcio, a solidão e a obesidade. Costumam ser dadas três razões para explicar porque partilhamos várias caraterísticas com as pessoas que nos são mais próximas. Uma é que tal se pode dever ao ambiente; outra é que nos relacionamos com pessoas que, à partida, já são semelhantes a nós: este comportamento denomina-se homofilia. A terceira hipótese é a do contágio social, ou seja, somos influenciados por quem nos rodeia. O contágio social é um tipo de contágio complexo, em que são necessárias várias exposições a diferentes pessoas com determinado comportamento para que a transmissão ocorra, ao contrário do que costuma acontecer com as doenças infeciosas. Também nas redes sociais se pode assistir ao desenvolvimento de “surtos” de informação ou de desinformação, que estão dependentes de vários fatores. Pode aliar-se o conceito de influenciador ao de superdisseminação: sabe-se que, para doenças como o VIH e a malária, 20% dos casos são responsáveis por cerca de 80% da transmissão. Ainda assim, são proporcionalmente poucos os conteúdos que se tornam virais na internet, e é difícil prever se tal vai acontecer. Fazendo um paralelo entre a propagação de uma infeção e de uma notícia falsa, esta última parece propagar-se numa área muito maior e de forma muito mais célere do que as notícias verdadeiras, não porque existam mais oportunidades de propagação, mas porque a probabilidade de transmissão em cada uma dessas oportunidades é superior, possivelmente devido ao fator novidade. Ao contrário do que possamos pensar, a vasta maioria dos artigos de notícias falsas não são publicados em websites de origem duvidosa, mas sim por fontes de confiança. O que acontece é que manipuladores online utilizam bots de redes sociais, muitas vezes dirigidos a alvos específicos, para difundir tweets falsos. O objetivo é chegar a jornalistas ou a políticos, que irão funcionar como ampliadores dessa história falsa, fazendo com que esta ganhe credibilidade, chegando a uma vasta audiência. Para isto também contribui o efeito de feedback da imprensa: quando uma notícia é divulgada por um meio de comunicação social, vários outros se lhe seguem. Deste modo, as redes sociais permitem aumentar a eficiência da transmissão. Segundo um estudo que pretendia efetuar uma comparação da prevalência de conteúdo de baixa credibilidade relacionado com a pandemia de COVID-19, entre as plataformas Twitter e Facebook, as contas automatizadas não parecem ter um grande papel na disseminação de conteúdo duvidoso, sendo as fontes oficiais as principais responsáveis pela infodemia, havendo inclusive uma coordenação entre diferentes contas, em ambas as plataformas. Como se pode, então, travar a propagação de uma notícia falsa? Tal como na transmissão de uma doença infeciosa, vários fatores estão implicados, e o encurtamento do tempo de reação desde a origem do surto é fundamental. Tal como a imunização ativa tem sido utilizada no combate à pandemia de COVID-19, também a imunização psicológica pode ser utilizada como uma arma na luta contra a infodemia. “Um dos maiores desafios da Saúde Pública é convencer as pessoas”, tal como é citado no livro, e a comunicação é uma das competências essenciais do médico de Saúde Pública, constituindo uma ferramenta fundamental no combate à desinformação. Autoria Filipa Gomes Edição Joana Silva “Tackling harmful content will have a direct effect – preventing a person from seeing it – as well as an indirect effect, preventing them spreading it to others.” 30/6/2022 0 Comments FACTFULNESS Factfulness não é apenas um livro, mas sim uma ferramenta de apoio na tomada de decisão, podendo ser utilizada tanto no setor da saúde, como no setor económico e empresarial.
Após anos de experiência em locais diversos do planeta, Hans mostra-se perplexo perante o facto de todos nós termos uma perceção enviesada do Mundo – achamos que o Mundo está pior do que aquilo que ele, realmente, está. Para o autor, devemos ter uma visão real do Mundo para nele podermos navegar. Ataques terroristas, alterações climáticas, guerras, doenças, perda de biodiversidade. Todos os dias nos deparamos com notícias chocantes de eventos trágicos. Raramente são noticiados os avanços lentos e estáveis da Humanidade, o que molda a forma como entendemos essa mesma realidade. Ao longo do livro, Hans Rosling apresenta-nos 10 instintos que nos levam a ter uma visão global dramática do Mundo, sugerindo-nos, em contrapartida, métodos práticos para os ultrapassarmos:
Factfulness é, na realidade, um livro de saúde pública dirigido à população geral. É intemporal pela abordagem proposta relativamente ao posicionamento perante problemas. Esta metodologia poderá ser adaptada a diversos contextos de saúde, tanto a nível global, nacional, local, comunitário ou individual, auxiliando na sua priorização. A leitura deste livro na era COVID-19 assume especial interesse. Crises globais envolvem a necessidade de uma vigilância apertada e uma agregação de dados em tempo real para uma permanente interpretação da realidade. A priorização assume, nos dias de hoje, uma importância redobrada. Torna-se mais evidente a necessidade de medir eventos, de alocar e mobilizar adequadamente recursos. Contudo, a Saúde Pública global não pode ficar presa à pandemia, havendo necessidade permanente de reavaliação e realinhamento. Reconhecer os instintos que nos podem turvar a visão da realidade é o primeiro passo. Factfulness deverá ser visto como uma ferramenta no processo de priorização e decisão, que assume especial relevo para o exercício da Saúde Pública num Mundo em permanente evolução. Autoria Joana Roque Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes |
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