“War causes death, disability, and disease. It damages the health-supporting infrastructure, displaces populations, violates human rights, and diverts resources. And it subsequently leads to more violence.” O livro “From Horror to Hope: Recognizing and Preventing the Health Impacts of War”, publicado em 2022 pela Oxford University Press, redigido pelo médico de Saúde Pública e epidemiologista Barry Lev, mostra o impacto da guerra na saúde, na humanidade e no meio ambiente, recorrendo a factos concretos da história. A conclusão é simples: “A guerra causa morte, incapacidade e doença. Danifica infraestruturas de apoio à saúde, desloca populações, viola os direitos humanos e desvia recursos. E subsequentemente leva a ainda mais violência.”
Salienta-se, desde já, a pertinência da leitura deste livro no contexto da realidade atual. O mundo vive uma “nova era de conflito e violência”, depois de quase meio século de paz. Neste momento, os conflitos Israel-Palestiniano, Russo-Ucraniano, Azerbaijão-Armeniano e os civis do Iémen e da Síria provocaram mais de 1.300.000 mortos e vários milhares de milhão de deslocados entre 2022 e 2023. Entre os sobreviventes, vários milhares de milhões de pessoas têm sofrido um declínio da sua saúde, por falta de acompanhamento dos cuidados de saúde, mas também pelos níveis elevados de stress a que são sujeitos, decorrentes de vivências traumáticas e de ameaças constantes à sua vida. A existência de guerra, ou conflitos armados, é um importante determinante social da saúde. O direito a uma boa saúde e bem-estar são considerados direitos humanos inalienáveis, Porém, são destruídos ou fortemente ameaçados pela guerra. Este livro salienta a extensão e gravidade do sofrimento humano que populações têm infligido umas às outras ao longo da história, desde pequenos conflitos locais até à Segunda Guerra Mundial, permitindo compreender a verdadeira dimensão dos custos da guerra – sociais, económicos, ambientais e humanos. A guerra não causa apenas baixas, mortes ou dissemina doenças. Afeta também a saúde mental das vítimas feridas e das suas testemunhas. A guerra leva à deslocação forçada de povos, danifica infraestruturas essenciais, contamina o ambiente e canaliza recursos para uso militar – o que gera ainda mais conflitos. Além disso, o livro demonstra que contextos de conflito aumentam as desigualdades em saúde. Os pobres, as crianças, os idosos e as mulheres são os mais vulneráveis, e os mais afetados pelas consequências supracitadas. O livro aborda ainda, de forma detalhada, as armas utilizadas na guerra - desde as convencionais às armas químicas, biológicas e nucleares - e o seu impacto na saúde dos militares e civis, destacando-se vários tipos de lesões, o risco de desnutrição e de doenças transmissíveis e não transmissíveis, transtornos mentais e impactos na saúde reprodutiva e no meio ambiente. Guerras prolongadas ou de elevado impacto humano e nas infraestruturas frequentemente levam a importantes crises sanitárias. Aqui, a Saúde Pública adquire um papel de extrema importância na elaboração de estratégias que possam prevenir ou mitigar os impactos da guerra na saúde e no ambiente. O risco de futuras guerras é real e parece estar a aumentar devido ao crescente nacionalismo verificado em vários países, à crescente disponibilidade de armas, à deslocação em massa de pessoas fomentadoras de instabilidade política e socioeconómica e às crescentes perturbações das alterações climáticas. O autor chama a atenção para o crescente militarismo dos discursos políticos, que normalizam a guerra e a necessidade de preparação, influenciando a opinião pública, as políticas e as prioridades económicas. O autor tem esperança de que, através da diplomacia, normas e convenções internacionais e de organizações internacionais como as Nações Unidas, seja possível diminuir a escalada de violência mundial, melhorar a comunicação e promover a estabilidade política. O livro termina com proficientes recomendações para prevenir a guerra e as suas sequelas, nomeadamente: a melhoria da participação dos cidadãos nos assuntos comunitários, o reforço da democracia nos governos através de eleições livres e da defesa do direito à liberdade de expressão e de imprensa. Para uma boa governação, é importante proteger os mecanismos que sustentam o Estado de direito e a justiça, bem como fortalecer as organizações da sociedade civil, facilitando a participação dos cidadãos e a capacidade de resposta do governo. Conclui: Não há guerra se houver uma boa governação! Autoria Teresa Carvalho Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardos
0 Comentários
“This report presents an alarming picture on the state of Universal Health Coverage around the world, even before the COVID-19 pandemic hit.” “Very few countries have managed to improve service coverage and reduce catastrophic out-of-pocket health spending.” “The proportion of the population not covered by essential health services decreased by about 15% between 2000 and 2021, with minimal progress made after 2015.” «Não deixar ninguém para trás» é a promessa central da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que reconhece a saúde como um direito humano fundamental. A melhor forma de cumprir esta promessa é através da Cobertura Universal de Saúde (Universal Health Coverage, ou UHC), o que significa que todas as pessoas – independentemente de quem sejam ou onde vivam – podem receber serviços de saúde de qualidade, quando e onde forem necessários, sem terem de passar por dificuldades financeiras.
Segundo o recente relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), o mundo está a seguir um mau caminho em relação à Cobertura Universal de Saúde. O relatório, sob o título “Tracking Universal Health Coverage: 2023 Global Monitoring Report”, publicado a 18 de Setembro de 2023 pela OMS, analisa o estado da cobertura de saúde a nível mundial, de acordo com a meta 3.8 dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030. A grande conclusão do relatório afirma que o mundo não está a realizar progressos quanto à melhoria da cobertura universal de saúde, tendo esta estagnado desde 2015. Por outro lado, os custos em saúde para a população têm sofrido um aumento crescente. Tem sido cada vez maior a proporção da população que teve necessidade de efetuar pagamentos diretos de valores catastróficos por serviços de saúde. O relatório alerta, também, que este quadro do estado da cobertura universal de saúde em todo o mundo já era alarmante, mesmo antes da pandemia da COVID-19. A expansão da cobertura dos serviços de saúde estagnou em grande parte desde o lançamento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em 2015 e a proteção financeira para aqueles que recebem serviços de saúde piorou. Em 2021, cerca de metade da população mundial – 4,5 mil milhões de pessoas – não estava coberta por serviços essenciais de saúde e, em 2019, cerca de 2 mil milhões de pessoas tinham enfrentado dificuldades financeiras devido a problemas de saúde. Destacam-se aqui as principais conclusões e explicações deste relatório:
Face a estes resultados, alcançar o objetivo da UHC até 2030 exige um investimento substancial do sector público e uma ação acelerada por parte dos governos e parceiros, com base em evidências sólidas, através da reorganização dos sistemas de saúde, centrada e orientada para os cuidados de saúde primários. Só assim poder-se-á promover equidade na prestação de serviços de saúde essenciais e na proteção financeira dos utentes. Alcançar a UHC requer também sistemas de informação de saúde modernos e adequados, que forneçam dados oportunos e fiáveis para informar e elaborar políticas de saúde. Estas mudanças são essenciais para que a expansão da UHC possa continuar e, ao mesmo tempo, para recuperar dos impactos da pandemia da COVID-19 nos sistemas de saúde e na força de trabalho. Por outro lado, é fundamental considerar e ultrapassar todas as barreiras macroeconómicas, climáticas, demográficas e políticas que ameaçam reverter todos os esforços e ganhos em saúde arduamente conquistados em todo o mundo. Autoria Teresa Carvalho Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso 12/9/2023 0 Comentários Uma História da Saúde Pública“Ao longo da história humana, os maiores problemas de saúde que os homens enfrentaram sempre estiveram relacionados com a natureza da vida em comunidade.” “Uma História de Saúde Pública”, de George Rosen, é o livro de referência na área da educação em Saúde Pública americana. Este foi escrito no final da década de 1950 e descreve todos os grandes acontecimentos que contribuíram para o desenvolvimento da saúde pública. Trata-se de uma viagem no tempo, descrevendo acontecimentos desde a antiguidade clássica até ao século XX e dando especial ênfase ao desenvolvimento da medicina no Ocidente.
Rosen inicia esta obra com algumas observações sobre as civilizações antigas, salientando as preocupações básicas da higiene, sustentadas por evidências arqueológicas. O naturalismo da medicina hipocrática é amplamente considerado como o primeiro passo em direção ao empirismo, mas a apreciação de Rosen é substantiva: a observação sistemática das condições agroclimáticas permitiu aos médicos gregos discernir entre doenças endémicas e epidémicas, identificar padrões de incidência sazonal e estabelecer correlações entre lagos, ou pântanos, e malária. A evolução do conhecimento influenciou decisivamente as estratégias utilizadas na agricultura (um exemplo foi o estabelecimento da hipótese do contágio entre animais). Roma beneficiou do conhecimento grego, mas fomentou a inovação com a criação de locais especializados dedicados aos aquedutos, esgotos e banhos públicos nos principais centros urbanos. Com a crescente reorganização das cidades e a implementação de restrições de abastecimento, transformaram os médicos de itinerantes em profissionais fixos em cada cidade. Com a queda do império Romano, os mosteiros tornaram-se as únicas organizações que desenvolviam soluções para os problemas de saúde comunitários. A partir do século XIII, os municípios passaram a assumir as funções da saúde pública, restringindo a criação urbana de gado, regulamentando os mercados alimentares e pavimentando e limpando as ruas. A peste trouxe outra mudança importante – o estabelecimento da quarentena. Rapidamente emergiu a ideia de urgência na assistência em caso de doença ou infortúnio, tanto no Oriente, islâmico, quanto no Ocidente, cristão. Falando em religiões, é de realçar que motivos religiosos e sociais foram muito importantes na criação de Hospitais. No Oriente, em 805, o primeiro hospital geral tinha sido construído em Bagdá, durante o reinado do califa Harun al-Rashid. Ao longo do século, construiu-se um total de 34 hospitais, refletindo o elevado nível da medicina em terras muçulmanas. No Ocidente, os hospitais surgiram ligados à igreja, nas ordens monásticas. Os mosteiros possuíam um infirmitorium – lugar de tratamento – uma farmácia e uma horta de plantas medicinais. Apenas a partir do século XIII o hospital medieval começou a sair das mãos dos religiosos para pertencer aos municípios, porém sem a completa substituição do clero. Monges e freiras, cujo salário era pago pelo município, continuaram a cuidar dos doentes. Os estados mercantilistas rapidamente conceberam a saúde da população como riqueza nacional e começaram a contabilizar a mesma através da recolha de estatísticas de vida. A evolução da saúde populacional beneficiou de outros dois grandes marcos: a mudança no abastecimento de água urbana das fontes públicas para a distribuição privada no interior e a adoção da inoculação – a precursora da vacinação. O livro culmina na análise do movimento sanitário que percorreu a Europa e os EUA em meados do século XIX – explicando as bases dos modernos sistemas de saúde pública e a sua ligação ao capitalismo. Explora a exigência de uma reforma sanitária profunda – no abastecimento de água, saneamento, habitação e legislação fabril. Aborda a migração do meio rural para o urbano, impulsionada pela industrialização, que sobrecarregou os sistemas de saúde pública tradicionais, levando a uma deterioração acentuada da saúde urbana. As famílias burguesas fugiram dos centros das cidades, apenas para perceber que o tifo e a cólera corriam ainda mais rapidamente. Os dois últimos capítulos são dedicados ao fim do século XIX, à “era bacteriológica” e às suas consequências, incluindo a descoberta de micróbios e vetores, a pasteurização e a melhoria significativa da saúde pública. Deixa ainda reflexões sobre a saúde infantil, nutrição, educação em saúde, saúde ocupacional, seguros e a necessidade de cooperação internacional - temas cuja crítica permanece atual. Autoria Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso “Obviously, being in good health is avoiding dying,” he understood, “but it’s also being able to move around well, being able to see and hear, being able to think clearly, and not being in pain, not suffering from anxiety, and not being depressed. It’s common sense. These things really matter to how you live your life. But if you just focus on death, you miss them.” Enquanto médico de Saúde Pública, considero que a função mais distinta e nobre que posso desempenhar é a do planeamento em saúde. Apesar da sua complexidade e interdisciplinaridade, desde a biomedicina à psicologia comportamental, esta competência visa sobretudo capacitar mudanças em saúde. Para aqueles menos familiarizados, as fases do processo de planeamento incluem o diagnóstico da situação, a definição de prioridades e objetivos, a elaboração de uma estratégia e de um plano de intervenção; a sua execução e subsequentes monitorizações e avaliações. No entanto, nem sempre todas as etapas são implementadas, ainda menos vezes pela ordem correta, e mais raramente com o cumprimento das regras e tarefas subjacentes. Como uma introdução à Saúde Pública, nada mais correto será do que versar sobre a primeira fase – mais concretamente, sobre a problemática e problemas de um diagnóstico de saúde à escala nacional, internacional e global. Neste comentário, faz-se uma reflexão dirigida sobre a evolução do paradigma de planeamento em Saúde Global, mais concretamente, tendo em conta o livro “Epic Measures: One Doctor, Seven Billion Patients”, centrado na história de Chris Murray, fundador do Institute for Health Metrics and Evaluation e do projeto Global Burden of Disease. Até finais do século XX, o conhecimento da saúde e da doença a nível global era confiante e errado. Confiante, devido à autoridade e certeza afirmada pelas instituições que o mediavam, descreviam e iam reportando. Errado, pela incoerência interna e externa dos seus resultados. No entanto, era fácil identificar contrastes gritantes, conforme mostram os seguintes exemplos. Em 1980, numa altura em que a mortalidade infantil era um dos principais desafios de Saúde Global, a sua contabilização mundial poderia variar entre menos de 20 milhões e mais de 30 milhões, dependendo da fonte – Organização Mundial de Saúde (OMS) e Nações Unidas, respetivamente, representado uma diferença de 50%. Estes contrastes viriam noutros indicadores, como na esperança média de vida. No Paquistão, em apenas um ano, registar-se-ia um aumento desta de 51,8 para 59,1 anos, equivalente ao esperado para uma década de progresso. Já na Gâmbia, o mesmo indicador, em dois anos, sofreria uma redução de 43 para 33,5 anos – uma diminuição catastrófica. Quanto às diferenças observadas, vários eram os motivos teóricos destas incongruências: métodos de medição distintos, diferentes formas de gerar evidência, processamentos alternativos de dados, casos duplicados, codificações heterogéneas, entre muitos outros. Na prática, diferentes organismos políticos, com diferentes regras, duplicavam os seus esforços, dividindo-se nas suas conclusões e perdendo-se no seu foco. Além disso, os dados fornecidos pelos países poderiam estar incorretos. Quando estas organizações internacionais usavam fontes primárias de dados, atribuíam-se-lhes total credibilidade e validade, fazendo lembrar uma falácia de petição de princípio com o silogismo disposto. Primeira premissa: Os dados de saúde fornecidos por um país são corretos. Segunda premissa: Uma dada nação é a única autoridade para considerar os dados do seu país como corretos ou incorretos. Logo, todos os dados fornecidos por uma certa nação são os corretos, porque foi a própria nação a dá-los. No entanto, existem vários motivos para querer melhorar (ou até piorar) certos indicadores. Independentemente do medidor e do reportado, a verdade era que, no final do século XX, se continuava a morrer sem se saber quanto, nem porquê. Das duas mil milhões de mortes ocorridas desde 1970, só cerca de um quarto constava num registo de sistema vital acessível. Mesmo em 2010, ano em que aproximadamente 53 milhões de pessoas morreram, em 147 dos 192 países das Nações Unidas, não existiam certificados de óbito fidedignos, sendo que muitas vezes nem existiam quaisquer registos. Mesmo em países “mais ricos”, os registos clínicos ainda apresentam muitos dados omissos. “‘There was a lot more data collected on the fact of death rather than the cause of death, which requires a medical doctor to certify what the child died from, and medical doctors were in short supply,’ Lopez says.” Como não se sabia do que se morria, não se dirigiam esforços para o combate proporcional das doenças. Assim, aquando da identificação da tuberculose como a principal causa de morte por doenças infeciosas nos adultos, a maioria dos programas de saúde global focava-se apenas em doenças infantis. A ausência de um correto diagnóstico de situação levaria a uma desadequada definição de prioridades e alocação de recursos. Por conseguinte, nesta altura, como as principais causas de morte em adultos eram diferentes das que mais afetavam as crianças, seria necessário desenvolver novas estratégias e programas para lidar com pessoas e problemas diferentes. No entanto, não bastaria criar dois grupos distintos de projetos de intervenção em saúde, divididos por faixas etárias – era preciso criar um contínuo de estratégias e planos que tivessem impacto ao longo da vida: uma criança que precisa de hidratação oral para a diarreia, se curada, pode mais tarde contrair infeção por VIH. Conforme viria a ser reiterado, esta falha de planeamento resultaria numa inefetividade útil em Saúde Global. Num relatório publicado em 1990 no Simpósio Nobel em Estocolmo, descreviam-se as disparidades sobre a distribuição da doença e morte, e do financiamento de investigação da saúde. Estimava-se que 93% da carga de mortalidade prevenível verificava-se nos países em desenvolvimento. No entanto, dos 30 mil milhões de dólares investidos na investigação em saúde em 1986, apenas cerca de 5% foram dedicados a problemas específicos destes países. Estes contrastes criavam implicações infelizes: “Treating the most common cases cost less than $250 per death averted. Put in terms of cost per year of life saved, the tab wasn’t even $10.” Dado o inadequado e variável retrato do status quo, tornou-se imperativo definir novas regras para perceber e responder aos desafios reais do mundo. Se até então a mortalidade era vista como uma realidade de duas dimensões (idade do óbito e causa), tornou-se incontornável encontrar novas formas de caracterizá-la. Assim, Chris Murray, figura central do livro, introduziu o conceito de “years of life lost” (anos de vida perdidos), como forma de contabilizar a mortalidade precoce, bem como os “disability adjusted life years” (DALYs), que consideram a duração e magnitude da doença durante a vida. Para acompanhar as suas ideias inovadoras, era necessária uma introdução considerável e fundamentada do seu racional e da sua pertinência. Assim, estas ideais vieram a ser incorporados no World Development Report de 1993, financiado pelo Banco Mundial, cuja edição era dedicada ao investimento na saúde. Como o objetivo maior deste produto seria definir necessidades e prioridades para melhorar políticas de saúde, as doenças da International Classification of Diseases foram categorizadas em três grandes grupos, incluindo um total de 100 doenças e lesões responsáveis por quase todas as mortes e por mais de 90% da carga de doenças global atribuída à incapacidade. “In Group I were what almost everyone thought of when they considered the concerns of poor countries: communicable diseases contracted by contagion or infection and health problems related to being born or giving birth. In Group II were commonly considered “rich country” problems: noncommunicable diseases such as cancers, addictions, heart disease, and depression. In Group III were injuries, intentional and unintentional—poisoning, drowning, road accidents, suicide, and other grisly events—which, at the time, virtually no one studied on a global basis.” Assim, só no início dos anos 90, assistimos aos primeiros esforços de compilação e catalogação de dados mundiais sobre a mortalidade, as suas limitações, o reconhecimento do foco dos grandes programas de saúde em apenas algumas das áreas mais impactantes e a definição de novos indicadores e métodos de análise. Com a produção do World Health Report do ano de 2000 da OMS, Murray conseguiu cativar a atenção mundial. Na página 200 deste documento, algo novo e avassalador foi apresentado: uma classificação ordenada do desempenho geral dos sistemas de saúde de cada país, ajustando a esperança média de vida ajustada à incapacidade provocada pela doença. Figura 1. Classificação ordenada do desempenho geral dos sistemas de saúde de cada país em 1997. (DALE = disability-adjusted life expectancy). Retirado de: https://cdn.who.int/media/docs/default-source/health-financing/whr-2000.pdf Tão chocantes foram os resultados (que convido seriamente a todos a leitura) que Murray e a sua equipa de “Evidência e Informação para Políticas” da OMS foram acusados de sabotagem política. Os rankings apresentados contrastavam com as expectativas e auto-imagem dos delegados nacionais, incluindo inúmeros Ministros da Saúde, apesar de poucas objeções substanciais terem sido apresentadas. Ou estariam eles a fazer um mau trabalho na gestão da Saúde nos seus países, ou a “evidência” teria de estar errada. Na mudança de Diretor-Geral de 2006, reformas na direção da OMS levaram à redução da equipa de 22 elementos para apenas dois, sem Murray. Neste seguimento, este iniciou os trabalhos que levariam à criação do Institute for Health Metrics and Evaluation e ao projeto Global Burden of Disease (GBD), responsável pelo estudo da mortalidade e doença em diferentes países, momentos, e características demográficas. O GBD viria a quantificar as perdas em saúde provocadas por centenas de doenças, lesões e fatores de risco, para melhoria dos sistemas de saúde. Nos esforços de Saúde Global da OMS que se seguiram, abandonou-se a quantificação e comparação universal de indicadores objetivos por apreciações seletivas e enviesadas. A indexação parametrizada para os principais problemas de saúde deu lugar aos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (dirigidos inicialmente apenas a países em desenvolvimento) e, mais tarde, aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (abrangente de todos os países). Apesar de parecerem inocuamente semelhantes, e até mais compreensivos, estas novas propostas apresentam limitações incontornáveis. Figura 2. Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (em cima) e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (em baixo). Através de: https://www.researchgate.net/publication/335299485 Nos ODS, os objetivos individuais não estão hierarquizados tendo em conta o grupo de problemas de saúde ao qual pertencem – por exemplo, o alcoolismo não está integrado no grupo das doenças não transmissíveis, sendo um indicador independente. Para além disso, todos os indicadores recebem o mesmo peso no cálculo da média aritmética que constitui o valor atribuído a cada objetivo, e que se repete para calcular índice sumário para comparação entre países – dando a mesma importância ao suicídio, ao tabagismo e à obesidade. Assim sendo, o resultado desta alteração de sistema conduziu a um aumento da relevância de tópicos com menor impacto na saúde (como o caso dos envenenamentos) e a diminuição, remoção e aglomeração de indicadores importantíssimos (integrando doença mental, cardiovascular e músculo-esquelética num tópico único). Figura 3. Desempenho do índice dos ODS relacionados com a saúde, do índice dos ODM e do índice não relacionado com os ODM, bem como de 33 indicadores individuais relacionados com a saúde, por país (2015). Os países estão classificados pelo seu índice ODS relacionado com a saúde, do mais elevado para o mais baixo. Os indicadores foram escalados de 0 a 100. SDG=Sustainable Development Goal. MDG=Millennium Development Goal. MMR=maternal mortality ratio. SBA=skilled birth attendance. Mort=mortality. NN mort=neonatal mortality. NTDs=neglected tropical diseases. NCDs=non-communicable diseases. FP need met, mod=family planning need met, modern contraception. Adol=adolescent. UHC=universal health coverage. Air poll mort=mortality attributable to air pollution. WaSH=water, sanitation, and hygiene. IPV=intimate partner violence. HH air poll=household air pollution. Occ risk burden=burden attributable to occupational risks. PM2.5=fine particulate matter smaller than 2.5 μm. Adaptado e modificado de: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(16)31467-2. Para todo o caso, inúmero Programas Nacionais de Saúde, desde o Português até ao Luxemburguês, sofrem do mesmo pecado original, por nascerem das referências da OMS, com pouco foco em questões tão determinantes como os fatores de risco modificáveis (responsáveis por cerca de 48% da carga de doença), em detrimento de atenção sobrelevada para vigilância epidemiológica de doenças transmissíveis e afunilamento da avaliação da saúde pela mortalidade e não pela qualidade de vida.
Conclusão… No nosso paradigma de saúde, enfrentamos desafios inauditos. Inauditos, não por serem novos, mas por até há bem pouco tempo não existir forma de medir o seu impacto e de o comunicar de forma clara. Foi feito um progresso enorme ao nível da recolha e análise de dados que permitiu o desenvolvimento do nosso conhecimento atual sobre as causas de mortes e o seu impacto. No entanto, é incontornável a importância de medir a saúde de forma transparente e rigorosa. São esses os métodos que permitiram perceber que a população mundial continua a crescer, que está a envelhecer e que acumula cada vez mais doenças crónicas. São essas as abordagens que permitiram identificar a incapacidade em saúde como uma parcela crescente dos custos galopantes e insustentáveis da saúde. Certamente terão algo a dizer sobre a forma de resolver os desafios contemporâneos que enfrentamos. Para tal, e feito este diagnóstico de situação, é necessário definir prioridades relevantes e pertinentes para o investimento dos recursos e desenho de intervenções efetivas em saúde. Assim sendo, com esta análise crítica, foi me possível compreender que, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são referências insuficientes e desadequadas para orientar políticas e intervenções em saúde. Primeiro, porque não respeitam os próprios princípios de priorização de problemas decorrentes de diagnósticos de situação válidos. Segundo, porque são ultrapassados no sue racional e rigor por uma alternativa superior, em constante aprimoramento e resultados validados – o Global Burden of Diseases. Por último, é urgente mudar a forma como se pensa em saúde – ou melhor, na doença – ou ainda melhor, na morte. Os sistemas de Saúde inspirados nos ODS não seguem evidência atualizada, estão sujeitos a pressão política e falham no reconhecimento das prioridades com maior impacto para as populações, pobres e ricas. Há que dar importância à medição do que está realmente a acontecer para permitir que o que fazemos vá ao encontro das necessidades de quem servimos. Só depois, se poderá começar a fazer Saúde Pública. Autoria José Miguel Diniz Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso 19/7/2023 0 Comentários Retalhos da Vida de Um Médico“Eles haviam-me confortado sem olhar aos meus préstimos. (…) Tinha recebido mais uma lição de humanidade.” Este livro conduz o leitor a uma viagem através de histórias contadas, de forma “retalhada”, das vivências de um médico em Portugal, em meados do século XX. A maior parte destes “retalhos” abordam a realidade do meio rural português da época, nomeadamente as condições de vida das populações do interior de Portugal Continental. O autor transmite a ideia de inspiração autobiográfica, apesar de ser difícil definir com exatidão a fronteira entre a realidade e a ficção.
A cronologia não é ortodoxa. Os retalhos têm uma relativa independência entre si e podem ser lidos isoladamente. Existe uma mistura de géneros literários. É possível identificar características associadas às autobiografias, aos contos, bem como aos diários e às memórias. Traços comuns são as dificuldades que o médico encontra na relação com as terras e as populações que o acolhem. Depara-se com um Portugal pobre, analfabeto e isolado. É chamado a partilhar o dia-a-dia com gentes que vivem em condições precárias de habitação, trabalho e de acesso a cuidados de saúde. Constata que a iliteracia e a falta de recursos deixam as pessoas à mercê de superstições, charlatães e pseudociências. Através dos relatos do livro, confirmamos a forma como a pobreza socioeconómica, os baixos níveis de escolaridade, a escassez de intervenções de saúde pública (ex.: vacinação) impactam a saúde das populações. É quase inevitável, para um leitor do século XXI, dar consigo a fazer comparações com a realidade de hoje e notar as conquistas que foram conseguidas na área da saúde. Nesta obra, encontram-se várias lições de humanidade e substrato para reflexões sobre o significado da experiência humana. A fronteira ténue entre a vida e a morte. A complexidade das relações interpessoais, com os seus encontros e desencontros. As subtilezas e os duplos sentidos da comunicação e da linguagem. O impacto do racismo, da xenofobia, da misoginia. Em última análise, a confrontação do Homem com a falta de empatia e compaixão do seu próximo. O autor foca-se na experiência humana e na relação médico-doente, com alguns pormenores técnicos das ciências médicas, utilizando uma linguagem que permite ao leitor comum compreender o enredo e acompanhar a viagem. Autoria Fábio Simões Edição Teresa Carvalho Revisão Mariana Cardoso |
Contactos
Email
[email protected] |
Twitter
twitter.com/saudemaispubli1 |
Instagram
instagram.com/saudemaispublica |