17/12/2021 0 Comentários Ser mortal Atul Gawande / Lua de Papel New York, Picador USA, 2014 272 p., Paperback EUR 16.50 ISBN: 9789892330198 Ser mortal é um livro escrito por um cirurgião, escritor e investigador na área de Saúde Pública – Atul Gawande – que trata algumas das questões mais importantes na compreensão do ser humano e do seu ciclo de vida.
Enquanto médico-escritor, Gawande descreve de forma detalhada, científica e precisa, alguns episódios da sua prática clínica e experiência de vida, tocando em pontos filosóficos e éticos da experiência humana, “assoprando”, escreve João Lobo Antunes, “à vida real nas matérias da mais sisuda gravidade”. Posto isto, o principal tema do livro é um assunto difícil de conceber: a mortalidade da condição humana. O peso que carregamos como condenação inevitável da passagem do tempo é um dos temas mais sisudos e graves com os quais, impreterivelmente, teremos que lidar. A fragilidade associada ao envelhecimento, à doença grave e ao aproximar da morte são as principais questões tratadas nesta obra, sendo estas muitas vezes ignoradas não só pela população em geral, mas também pelos médicos e restantes profissionais de saúde. Apesar do contacto quase diário com estes dilemas, estes profissionais, muitas vezes, encaram-nos de forma leviana. No entanto, talvez esta desvalorização do problema possa ser interpretada como um mecanismo de “coping”, motivado pela constante exposição às temáticas referidas. Gawande faz um apelo para uma reflexão sobre a mudança de filosofia associada aos cuidados de saúde, necessária para que nos possamos tornar capazes de lidar com esta fase do ciclo de vida. A procura incessante pelo tratamento e sobrevivência faz com que a abordagem do pessoal médico não tenha como foco principal a melhoria do bem-estar dos doentes, dos seus familiares diretos e cuidadores. Com esta inversão de prioridades da qualidade para a quantidade, os cuidados prestados são, frequentemente, inadequados às verdadeiras necessidades e desejos dos nossos doentes. A abordagem deste tema, que tem tanto de natural como de delicado, é feita, pelo autor, de uma forma direta, mas com muito tato. Através de vários exemplos, este demonstra como uma abordagem refletida leva a um maior nível de satisfação e sensação de paz tanto por parte dos indivíduos (a envelhecer ou em fase terminal), como pela sua família e amigos. A falta de uma comunicação clara sobre os verdadeiros desejos dos idosos ou doentes terminais desencadeia angústia nos familiares, que se sentem incapazes de tomar decisões. Assim, devido à falta de discussão destes problemas entre o seio familiar e a equipa responsável pelos cuidados, os doentes acabam por sofrer intervenções desnecessárias e que em pouco ou nada contribuem para a melhoria da sua qualidade de vida e independência. Muitas vezes, o oposto do desejado acontece, e apenas se prolonga o sofrimento que, invariavelmente, culmina na morte. Na primeira parte do livro, o autor foca-se no envelhecimento, abordando diferentes modelos de cuidados, tais como habitações multigeracionais e lares com assistência nas tarefas domésticas e cuidados de saúde. Nestes, os seus residentes mantêm a sua independência, sendo que cada modelo apresenta os respetivos prós e contras para o idoso e para a sua família. Nesta obra, há uma descrição exata de como o envelhecimento altera o nosso corpo e a sua funcionalidade, que nos toma de surpresa e que nos invoca uma sensação de impotência. Esta sensação está, irrevogavelmente, ligada à nossa independência, mesmo depois de perdermos algumas das nossas capacidades. A dignificação do envelhecimento deve ter como foco primário o ponto de vista do idoso e não do cuidador ou do pessoal médico. Este ponto de vista é-nos transmitido, de forma brilhante, pelo autor do livro, que entrevistou vários idosos, dando-lhes a oportunidade de se expressarem sobre como gostariam que os cuidados lhes fossem prestados. Embora os lares de idosos sejam extremamente seguros, o autor apresenta como contra-argumento que esta segurança apenas serve para salvaguardar os interesses dos prestadores de cuidados e dos familiares dos utentes, porque uma vida com a máxima segurança não é o tipo de vida a que maioria das pessoas aspira. Depois desta observação, o autor tenta encontrar modelos que procurem trazer significado, independência e autonomia à vida dos residentes em lar, mesmo dos mais frágeis, dando exemplos de projetos nos quais se optou pela introdução de animais de estimação ou crianças no seu convívio regular. Apesar disto, poucas soluções são apresentadas para pessoas com demência ou com limitações da capacidade cognitiva. Ainda nesta secção, é brevemente abordada a possibilidade de oferecer cuidados a doentes terminais através do internamento domiciliário, onde estes podem viver os seus dias finais no seu próprio lar, rodeados por entes queridos e com o maior conforto possível. Neste contexto, o autor apresenta vários exemplos de como a aceitação e compreensão da morte iminente poderão acrescentar qualidade aos nossos últimos dias. Na segunda parte do livro, o autor refuta o paradigma médico do tratamento a todo o custo, independentemente daquilo que faz mais sentido para os doentes, cujas prioridades, muitas vezes, “ultrapassam o simples prolongar da sua vida”. Baseando-se em artigos de estudos de caso, Gawande dá exemplos de exceções em relação à esperança média de vida de um doente terminal. O autor faz ainda algumas comparações quanto à proporção de mortes que ocorre no próprio lar vs. em contexto de cuidados de saúde, extrapolando resultados que, dificilmente, têm validade interna e externa. Na parte final do livro, o autor discute a problemática da eutanásia e a forma como o “suicídio assistido” praticado nos Países Baixos é uma forma de derrota do sistema de saúde, que deveria melhorar a qualidade do final de vida e não tentar encurtar o sofrimento através da morte. No livro, segue-se a discussão sobre o facto de não serem oferecidas alternativas à eutanásia, que poderia deixar de ser uma opção, caso o sistema de saúde oferecesse cuidados paliativos adequados às necessidades da população. Através de uma analogia com a história do seu pai, Gawande faz um paralelo sobre a decisão partilhada das questões sobre o final de vida, onde dirige aos médicos um desafio: o de ajudar os doentes a interpretar o que será melhor para eles, tendo por base as suas prioridades, ao invés das abordagens paternalistas ou informativas que são utilizadas com frequência. O livro Ser mortal oferece uma perspetiva detalhada do declínio das funções humanas, sem, no entanto, apresentar soluções perfeitas para lidarmos com o mesmo. Ainda assim, este livro surge como uma lufada de ar fresco num problema tão difícil de lidar e sobre o qual o nosso entendimento é limitado. Assim, o que este livro nos proporciona é a possibilidade de discussão dum tema tão atual quanto intemporal, de uma forma simples e concreta. A devolução de poder ao idoso ou paciente terminal propõe uma abordagem pragmática deste assunto grave e incontornável, tanto a cuidadores como a médicos. Esta é uma leitura obrigatória para todos aqueles que querem dar o melhor final de vida possível aos seus doentes ou familiares. Autoria Joana Maia Edição Filipa Gomes
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