7/12/2022 0 Comentários COISAS DE LOUCOS Quando a jornalista Catarina Gomes escreveu a reportagem sobre os últimos doentes vivos internados no Hospital Miguel Bombarda, acompanhou 24 homens e mulheres herdeiros de um tempo em que o confinamento surgia como a primeira resposta da medicina e da sociedade à doença mental. Estas pessoas viviam no hospital há uma média de 40 anos e tinham duas coisas em comum: todos haviam sido diagnosticados com uma patologia do foro psiquiátrico e todos tinham a férrea vontade de ali permanecer. O impacto desta experiência foi tal que Catarina quis conhecer também as histórias dos doentes mortos. Regressou aos arquivos do hospital e encontrou, no sótão do edifício, uma caixa empoeirada que ficara esquecida. Ao abri-la, deparou-se com dezenas de objetos que haviam pertencido, décadas antes, a indivíduos que por ali tinham passado ou vivido. Nascia assim o Coisas de Loucos. Coisas de Loucos começa por fazer uma breve revisão histórica. As melhores estimativas apontam para que cerca de 66 mil indivíduos terão passado pela instituição em toda a sua história. Miguel Bombarda (1851-1910) foi diretor do Hospital de Rilhafoles (como anteriormente era designado o Hospital Miguel Bombarda) de 1892 até à sua morte, apostando na melhoria das condições de assistência e tratamento dos doentes sob os preceitos da psiquiatria alemã, com abordagens inovadoras e imprimindo dinamismo à especialidade através de um vasto corpo profissional e académico. Contextualizada a sua origem, o manuscrito é de seguida fundamentalmente uma coletânea de pequenas histórias. Através de uma narrativa semi-histórica, Catarina Gomes relata os eventos das vidas dos seus donos através dos seus objetos, ora recorrendo aos registos hospitalares, ora contextualizando com acontecimentos históricos, ora preenchendo as lacunas com questões e suposições pessoais que embelezam a história sem a caricaturar. Inicialmente, a autora procurara os doentes antigos mais célebres, descritos como mais perigosos ou como mais loucos. Entre estes “ilustres”, surgiam nomes como o de José Júlio Costa, o homem que assassinara o presidente Sidónio Pais, Ângelo de Lima, poeta da geração de Fernando Pessoa, Valentim de Barros, bailarino homossexual internado pela sua orientação sexual, e, claro, Aparício Rebelo dos Santos, o homem que matara o Doutor Bombarda. Contudo, estes perderam relevância aquando da descoberta da caixa. Os objetos encontrados eram itens que qualquer um poderia trazer consigo: o molho de chaves, a caneta, os óculos, a carteira, os papéis rabiscados, o documento de identificação. O fascínio pela banalidade na doença mental tornava-se uma espécie de voyeurismo intelectual, uma vontade de compreender a loucura como se fosse possível contorná-la, como um buraco na estrada. Antes de serem forçados ao confinamento, os internados do Hospital Miguel Bombarda tiveram família, amores, ocupação, planos para o futuro. Pela mestria das palavras de Catarina Gomes, estes indivíduos são momentaneamente resgatados do esquecimento e do anonimato. O fio condutor ao longo das páginas é a lente aplicada a estas histórias exumadas, uma perspetiva sistematicamente humanizadora em que a autora nos traça os contornos destas pessoas, as suas qualidades e defeitos, os seus valores, crenças e pensamentos, numa estrutura biográfica que evoca empatia. Sem nunca perder o pendor literário, a autora consegue que, quer o tema, de uma forma global, quer cada uma das histórias relatadas, o sejam de uma forma imensamente digna e respeitadora, sem menorizar sofrimentos mas também sem os romantizar. São histórias que invocam a compreensão do outro, a desmistificação do doente mental como um ser humano complexo e imperfeito. A própria autora expressa que “à procura do excecional na loucura, encontra-se o absolutamente corriqueiro. A maior parte dos que sofrem de doença mental não são artistas nem criminosos, nem geniais, nem perigosos. São como nós. Somos nós”. Quer de um ponto de vista discriminatório, quer de um ponto de vista de saúde pública, é inegável a efetividade de uma abordagem mais holística que considere as circunstâncias e motivações específicas do indivíduo e ofereça uma variedade de opções de tratamento e suporte. Este é um livro que cruza psiquiatria e saúde mental, direitos humanos e ética, valores sociais e culturais de um país que, como muitos outros durante muito tempo, encarou a doença mental como algo inevitavelmente condenado à vergonha, à ocultação e ao exílio entre quatro paredes. Fazendo uso de uma estrutura linear e de uma linguagem clara e simples, por vezes até popular, do leitor espera-se que mantenha a abertura de pensamento e a disponibilidade para rever os seus próprios conceitos de doença mental. Autoria José Durão Edição Joana Silva Revisão Filipa Gomes “À procura do excecional na loucura, encontra-se o absolutamente corriqueiro. A maior parte dos que sofrem de doença mental não são artistas nem criminosos, nem geniais, nem perigosos. São como nós. Somos nós."
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