4/9/2023 0 Comentários O papel dos profissionais de saúde na promoção da literacia em saúde: perspetivas e desafios em PortugalDe acordo com a Organização Mundial da Saúde, o conceito de Literacia em Saúde foi definido como as competências cognitivas e sociais que determinam a motivação e capacidade das pessoas para obter, compreender e utilizar informações de formas que promovam e mantenham uma boa saúde. Literacia em Saúde significa, por isso, mais do que simplesmente ser capaz de ler panfletos e marcar consultas com sucesso e vai além de um conceito restrito de educação em saúde e comunicação orientada para o comportamento individual. Literacia em Saúde aborda os fatores ambientais, políticos e sociais que determinam a saúde e ao melhorar o acesso das pessoas à informação de saúde e a sua capacidade de a utilizar eficazmente, sendo crucial para o empoderamento do cidadão individualmente e da sociedade como um todo. Assim, os profissionais de saúde têm um papel central na promoção da Literacia em Saúde. Pensando na abordagem individual da maioria da prática clínica, os profissionais de saúde são as fontes primárias de informação em saúde, capacitando os seus utentes a compreender, avaliar e aplicar informações relevantes para tomar decisões informadas sobre a sua saúde; e por outro lado, são influenciadores e promotores do comportamento salutogénico dos seus utentes, motivando-os a escolher as opções mais saudáveis. Por outro lado, numa perspetiva comunitária, e nas competências de um Médico de Saúde Pública, os profissionais de saúde podem influenciar e intervir nos fatores ambientais, políticos e sociais, potenciando ecossistemas promotores de saúde, e facilitando o acesso às opções mais saudáveis; para além de através de estratégias de comunicação e educação para a saúde poderem melhorar diretamente o nível de conhecimentos de saúde e em última instância de Literacia em Saúde, da sua comunidade. Contudo, na definição apresentada inicialmente, aborda-se um dos aspetos que considero essenciais para a operacionalização da Literacia em Saúde e um dos nossos maiores desafios: intervir em Literacia em Saúde, para além da dotação unilateral de informação em saúde. “The great enemy of communication is the illusion of it.” - William Whyte Adaptando a citação de Whyte, um dos maiores desafios da Promoção da Literacia em Saúde, em Portugal, é a ilusão de que isso está a acontecer. O conceito ficou popular e vemos regularmente Planos, Estratégias e Ações referindo “Literacia em Saúde”, mas pouca concretização prática para além do folheto, poster ou publicação na rede social. Quantos são os planos e as estratégias que envolvem realmente os profissionais que os irão implementar e os públicos que pretendem alcançar? Quantos são ainda, aqueles que partem de um diagnóstico de situação que permita dirigir e customizar as medidas a aplicar? Tal também acontece, porque durante alguns anos, na maioria dos Planos de Saúde, Literacia em Saúde foi vista como uma ferramenta e não como intervenção em si mesma. Os principais desafios e oportunidades na área da Literacia em Saúde são já sobejamente conhecidos e, ainda que com falta de recursos e com um longo caminho a percorrer para obter os resultados almejados no novo Plano de Literacia em Saúde e Ciências do Comportamento 2023-2030, Portugal tem sido um dos pioneiros no que diz respeito à definição de estratégias e ações no âmbito da Literacia em Saúde em articulação com as Ciências do Comportamento, procurando as melhores práticas na ativação de comportamentos de prevenção da doença e de proteção e promoção da saúde. Nos quadros abaixo compilo alguns desses desafios e oportunidades.
Destaco 5 ideias-chave como ponto de partida para o investimento na Literacia em Saúde:
Neste âmbito as competências em Planeamento, Comunicação e a visão holística e integrada dos Médicos de Saúde Pública, são essenciais para melhorar os níveis de Literacia em Saúde da população portuguesa e para influenciar a adoção de comportamentos saudáveis. Numa altura em que o padrão social e de consumo dos Serviços de Saúde se altera, e com a patente necessidade que existe da correta autogestão da saúde e devida utilização dos Serviços de Saúde para possibilitar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, acredito que é, cada vez mais, necessário colocar a Promoção de Literacia em Saúde nas nossas prioridades de intervenção. Para além disso, há muito que se fala da centralidade do cidadão, o que só pode ser uma realidade se este souber aceder, processar e utilizar a informação necessária para a sua saúde. Em suma, é necessário um esforço coordenado que envolve não apenas os profissionais de saúde, mas também as instituições de saúde, os meios de comunicação, o sistema educativo, social e político. Os profissionais de saúde, no seu dia-a-dia, podem contribuir ativamente para a Promoção da Literacia em Saúde, e os Médicos de Saúde Pública, em particular, podem ser decisivos para a operacionalização da Literacia em Saúde, e para a inclusão da Literacia em Saúde e das Ciências do Comportamento de forma transversal e basilar nos vários Planos e Estratégias de Saúde. Desta forma, potencia-se a criação de Sistemas Promotores da Literacia em Saúde, e obtendo melhores resultados de saúde para a população.
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1) Sistemas de saúde em evolução: Num tempo de grandes incertezas é cada vez mais difícil antecipar o futuro e cada vez mais necessário tentar fazê-lo. Há uma ciência em desenvolvimento e uma literacia necessária sobre o desenho, o comportamento e a evolução dos grandes sistemas sociais, porque todos temos um papel a desempenhar. Há mais de uma década, num estudo sobre o que pensavam os europeus sobre o futuro dos seus sistemas de saúde, concluía-se que estes temiam que “faltasse aos seus governantes a cultura, a imaginação e a vontade necessárias para canalizar para soluções de interesse comum, o enorme potencial de inteligência, conhecimento e inovação disponíveis na sociedade atual” (1). Conclusão interessante, mas insuficiente! Faltaria acrescentar alguma coisa sobre o papel dos inquiridos, dos europeus, para que essas transformações aconteçam. A compreensão da complexidade dos sistemas de saúde e das suas implicações na governação da saúde é uma matéria de relevância crescente. A este propósito, observa Daniel Innerarity, em “Uma Teoria para a Democracia Complexa” (2021) (2), “estamos ainda pouco preparados para lidar com a riqueza dos elementos, valores, informação e inteligência distribuída, interdependência, incerteza, inabarcabilidade e aceleração, próprias dos nossos tempos”. E acrescenta que isso leva a uma prática política que sobrevive pelas vantagens da simplificação, num mundo que não compreende, compensando “a penúria analítica com a prescrição fácil”. Neste contexto, vejo vantagens em adotar uma exposição que, sem perder de vista essa complexidade, torna mais tangíveis os aspetos críticos do que está em causa, visualizando e contrastando duas alternativas para a evolução dos sistemas de saúde: (a) a sua “democratização” – um sistema de saúde primordialmente centrado nas pessoas – ou (b) a sua “industrialização” – um sistema de saúde predominantemente baseado na normalização e rentabilização de procedimentos. 2) Industrialização nos sistemas de saúde: Comecemos pela industrialização dos sistemas de saúde (3), na qual se faz a convergência do “conhecimento” com a “rentabilidade”. Trata-se do aperfeiçoamento de “cadeias de produção”, tendencialmente transnacionais, de prestação de cuidados, ganhando rentabilidade pela normalização de produtos, técnicas, tecnologias e procedimentos, em grande escala. Essa normalização inclui a gestão do percurso das pessoas (triagem e referenciação protocolizadas) através dos serviços considerados necessários. Os custos, os preços, o desempenho e a rentabilidade de cada percurso são rigorosamente calculados e tidos em conta na gestão desses percursos. As decisões críticas destes processos industriais são tomadas longe das pessoas e das comunidades onde os cuidados são prestados, em “lugar incerto”, e dificilmente são influenciados por elas. São financiadas por “dispositivos seguradores” e a diferenciar o acesso aos cuidados em função das características das fontes de financiamento dos clientes. Podem “diferenciar o produto” (decidir o tipo de cuidados que prestam) e “segmentar o mercado” (o país/região onde se instalam, e tipos de financiamentos que aceitam) de acordo com os seus critérios de rentabilidade. Tendem a ser organizações empresariais atuando simultaneamente em múltiplos mercados, para além da prestação de cuidados de saúde (4). Profissionais e académicos de distintos países desenvolvidos – dos Estados Unidos e da Europa – subscreveram recentemente um “manifesto anti industrialização” dos sistemas de saúde (5). 3) Democratização dos sistemas de saúde: Em contrapartida, um sistema de saúde primordialmente centrado nas pessoas, procura a fórmula certa para fazer a convergência do “conhecimento” com a “democratização”. Começa por valorizar os fatores que protegem e promovem a saúde das pessoas e das comunidades onde se inserem, ao longo de todo o seu percurso de vida, com a sua participação. Promovem planos de cuidados, como “propriedade das pessoas”, com objetivos acordados e resultados avaliáveis, partilhados digitalmente por toda a equipa cuidadora, gerindo assim o percurso das pessoas através dos cuidados de que necessitam. E isso é para todos. Da análise contínua desses resultados estabelece-se um processo permanente de aprendizagem para todos os envolvidos nesse processo. E isso suscita duas perguntas essenciais para a governação da saúde: com os recursos disponibilizados para a saúde – para o Serviço Nacional de Saúde – que resultados de saúde podemos esperar realizar? E até que ponto são essas expectativas razoáveis e aceitáveis? 4) Um modelo de governação para a democratização da saúde: Para realizar expectativas aceitáveis precisamos de um novo modelo de governação e governança, não só para o Serviço Nacional de Saúde, mas também para a saúde por parte do conjunto do governo (6). Isso inclui, entre outras coisas, (a) novas formas de gerir as inteligências distribuídas e colaborativas necessárias à democratização do sistema e (b) dispositivos adequados de análise, planeamento e gestão estratégica para a gerir a sua transformação. Está em curso na União Europeia o desenvolvimento do “Espaço Europeu de Dados de Saúde” cujos dois principais objetivos são: (a) “Capacitar as pessoas através de um maior acesso digital aos seus dados pessoais de saúde eletrónicos e do controlo desses dados, a nível nacional e da EU” e (b) “apoiar a sua livre circulação, promovendo um verdadeiro mercado único para os sistemas de registos de saúde eletrónicos” (7). Só um grande equilíbrio na persecução simultânea destes dois objetivos assegura a democratização dos sistemas de saúde em vez da sua industrialização. Para tudo isso necessitamos de um Estado mais inteligente, como salientam vários autores, entre os quais Mariana Mazzucato (8) (9) – “precisamos de um Estado inteligente e criativo orientado para uma missão estratégica; necessitamos de um contrato social a prazo, transversal, não por sectores, mas sim por “missões” que aceitem os desafios do nosso tempo e se comprometam com resultados concretos para as ações a empreender. Os que servem o Estado (os “funcionários”) têm que ser empreendedores públicos”. Penso também assim há algumas décadas (10). 5) Saúde Pública e sistemas de saúde: A Saúde Pública tem um papel fundamental na sustentação da democratização da saúde, a nível local, nacional, europeu e global. 5.1. Saúde Pública na comunidade: São necessárias “estratégias (planos) locais de saúde” como compromissos entre todos os atores sociais locais para proteger e promover a saúde da comunidade (que não podem deixar de ter um papel fundamental em tempo de emergência de saúde pública). O país precisa de um fórum onde se apresentem, discutam e valorizem as estratégias locais de saúde em desenvolvimento e de uma rede de troca de experiências e aprendizagem contínua neste domínio. Mas para que isso aconteça, é indispensável apostar no desenvolvimento das Unidades de Saúde Pública dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES), parente pobre da reforma dos cuidados de saúde primários – desde a gestão da informação, conhecimento e comunicação, até aos recursos humanos e competências necessárias para atuar na comunidade. Este desenvolvimento terá de ser potenciado pela efetiva ativação da governação clínica e de saúde. 5.2. Saúde Pública nacional, europeia e global: O país precisa de políticas de bem-estar e prosperidade, transversais a todos os sectores económicos e sociais, da responsabilidade do conjunto do governo, com o apoio conceitual e técnico das instituições de Saúde Pública. O “Plano Nacional de Saúde” ainda não serve esse propósito. Em Novembro de 2022 a Comissão Europeia propôs uma “Estratégia da União Europeia para a Saúde a nível Global” (11). A principal mensagem da Estratégia é que “a UE tenciona reafirmar a sua responsabilidade e aprofundar a sua liderança no interesse dos mais elevados padrões de saúde, com base em valores fundamentais, como a solidariedade e a equidade, e o respeito pelos direitos humanos”. Esta estratégia define 3 prioridades fundamentais: (a) Melhorar a saúde e o bem-estar das pessoas ao longo da vida; (b) Reforçar os sistemas de saúde e promover a cobertura universal dos serviços de saúde; e (c) Prevenir e combater as ameaças para a saúde, incluindo pandemias, aplicando uma abordagem «Uma Só Saúde». Não pode deixar de existir uma grande proximidade entre as preocupações internas da UE com a saúde e o desenho desta estratégia global. Espera-se que isso tenha também reflexos positivos para os portugueses. Referências bibliográficas:
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Fevereiro 2024
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